30.11.06
ENTRE PONTOS
Mais uma vez, a vida, através de um amigo, que a arrogância, ainda que indelével, representa um dos pontos mais frágeis de cada um de nós, o que pode não ser visto e, contudo, pode estar na origem da derrocada da construção mais elaborada…Ainda que sem consciência, talvez eu realmente tivesse, para além da amizade que me une ao Diogo, julgado estar um passinho à sua frente em algumas situações da vida…Enganei-me, e foi o “Amigo” que me ajudou a ter consciência desse erro, permitindo, dessa forma, que me conhecesse um pouco mais, que me apercebesse de partes sombrias que desconhecera até aí…É difícil ver as nossas próprias costas enquanto caminhamos pela vida, daí a importância que cada vez mais reconheço aos amigos, e que nos ajuda a descobrir sobre nós o que, sozinhos, talvez não viéssemos nunca a descobrir…Sim, o Diogo, neste caso, foi o espelho que reflectiu algo que era um pouco sombrio em mim e de que não tivera consciência até esse momento. Sem julgamentos, apenas questionando, fazendo reflectir. Quanto mais pequenos vemos os outros, neste ou naquele momento, mais grandiosos eles podem surgir instrumentalizando a vida que, a todo o momento tem preparadas lições que são vitais para prosseguirmos o trilho que desejamos traçar, mas de que nunca conhecemos todos os traços…
Decidi tentar ser mais visível no que escrevo; entendo que a verdadeira origem do que escrevo deve ter viva voz, sem limites deste ou aquele assunto que me interesse retratar. E se a vida, na minha perspectiva, é uma construção minha, também me parece cada vez mais verdade ser inegável a influência dos que me são próximos sobre mim e essa construção. Assim, sempre que isso for possível, não vou escrever sobre quem pode fazê-lo, na primeira pessoa, e também não vou pedir-lhes que escrevam sobre isto ou aquilo; pelo contrário, vou pedir apenas que escrevam o que quiserem sobre o que quiserem, desde que isso os retrate, de alguma forma, seja através de um momento particular ou uma reflexão, de uma história ou de uma não história…Vou tentar que, juntos, possamos construir algo que mostre a vida tal como cada um de nós a vê, nos momentos representados com a convicção de que será sempre algo que se fosse o resultado da minha tentativa de ver a vida pelos “seus” olhos…
Assim, o alinhamento do trabalho que tinha em mente, ficou deslocado, mas decidi não fazer correcções de forma a escondê-lo, prefiro dar à alteração dessa estrutura, o valor que representa a descoberta de um erro e a tentativa da sua correcção…Vou tentar corrigir o erro, sem o esconder, para que, em consciência, possa dar o devido valor a quem contribuiu para alargar um pouco mais o meu olhar…
Decidi tentar ser mais visível no que escrevo; entendo que a verdadeira origem do que escrevo deve ter viva voz, sem limites deste ou aquele assunto que me interesse retratar. E se a vida, na minha perspectiva, é uma construção minha, também me parece cada vez mais verdade ser inegável a influência dos que me são próximos sobre mim e essa construção. Assim, sempre que isso for possível, não vou escrever sobre quem pode fazê-lo, na primeira pessoa, e também não vou pedir-lhes que escrevam sobre isto ou aquilo; pelo contrário, vou pedir apenas que escrevam o que quiserem sobre o que quiserem, desde que isso os retrate, de alguma forma, seja através de um momento particular ou uma reflexão, de uma história ou de uma não história…Vou tentar que, juntos, possamos construir algo que mostre a vida tal como cada um de nós a vê, nos momentos representados com a convicção de que será sempre algo que se fosse o resultado da minha tentativa de ver a vida pelos “seus” olhos…
Assim, o alinhamento do trabalho que tinha em mente, ficou deslocado, mas decidi não fazer correcções de forma a escondê-lo, prefiro dar à alteração dessa estrutura, o valor que representa a descoberta de um erro e a tentativa da sua correcção…Vou tentar corrigir o erro, sem o esconder, para que, em consciência, possa dar o devido valor a quem contribuiu para alargar um pouco mais o meu olhar…
29.11.06
O MEU AMIGO DIOGO
Abre a porta de casa do seu amigo Mateus, chama: Mateus!
A casa está em silêncio, a amizade é de longa data, a entrada é franca. O escritório, local onde o amigo passa a maior parte do seu tempo, é o primeiro local para onde se dirige. Mateus não se encontra lá; no computador, Diogo apercebe-se de um trabalho em curso: “ah, o novo trabalho do Mateus!” A esta altura, a curiosidade era já muito patente no olhar acutilante de Diogo que se deteve apenas um segundo, antes de considerar que a amizade era grande o suficiente para permitir a invasão…
Senta-se em frente ao écran e começa a ler. Alguns minutos depois, com o olhar apreensivo, pára, recosta-se na cadeira, os olhos muito azuis parecem escurecer…De repente levanta-se, dirige-se às escadas e acede à varanda, no 1º andar; o amigo está ali, sentado, à frente de um whisky, o olhar poisado na paisagem como se estivesse olhando através dela…
-“Mateus!”
-“Diogo! Desculpa” – a expressão de Mateus era quase assustada, parecia ter sido interrompido abruptamente no meio de uma qualquer viagem – “Esqueci-me completamente das horas…vou só pegar o blusão e podemos ir.”
-“Espera um pouco Mateus…” – o seu olhar, o olhar do seu amigo Diogo estava mais sério do que era hábito, sentou-se à sua frente e parecia… um pouco mais o Diogo que ele, Mateus, adivinhava, do que o que se revelava todos os dias, à vista de todos…o bonitão bem sucedido profissionalmente, que não deixava escapar um fim-de-semana, no seu próprio iate, sempre em companhias deslumbrantes, alegre e deslizante, estava sério…
Na verdade, Mateus já tinha percebido que havia mais Diogo do que ele mostrava através dos óculos de sol, mas embora o fascinasse a possibilidade dessa revelação, não constituía para ele um problema a aparente superficialidade do amigo. Para Mateus, não era importante responder a questões como as que lhe eram recorrentemente colocadas quando se falava de Diogo; um sorriso, perante questões como “não sei como consegues ser amigo daquele tipo”,”não tem nada em comum contigo”, “não passa de um playboy”, era para Mateus a única resposta possível, porque não tinha sentido nunca necessidade de justificar a amizade, fosse por quem fosse, com argumentos de qualquer tipo; para Mateus, a amizade entre as pessoas acontecia num primeiro momento sem razões concretas, antes por puro acaso, empatia que pode ou não consolidar-se… e depois vai-se construindo em constante interacção, alheia a questões que lhe são irrelevantes, até que se transforma mesmo em amizade, aquela, a única digna desse nome, em que se aceita o outro tal como é sem que haja a pretensão de mudar uma vírgula… Claro que, para ele, a amizade também não era a elegia constante um do outro, nem incapacidade de agitar, não era uma relação morta ou um lago de águas paradas; pelo contrário, era uma relação dinâmica em que tudo o que é importante para o crescimento de cada um é discutível, e dessa forma a amizade se renovava a cada passo, a cada silêncio (entre verdadeiros amigos, podem partilhar-se silêncios mais significativos do que certas conversas que se pretendem inteligentes e férteis), mas em que o nível de respeito é o mais alto, independentemente de todas as variáveis individuais existentes… Assim, para Mateus, a aparente leveza do amigo tinha contribuído para reflectir sobre si próprio ou, dizendo de outra forma, tinha contribuído, como é natural, para a sua construção pessoal, para um aprofundamento do seu auto-conhecimento, para uma maior consciência da sua identidade e, consequente e previsivelmente, tinha contribuído também para o aprofundamento da relação de amizade entre os dois…Mais uma forma silenciosa de crescer na relação com os outros e consigo próprio.
Não, para Mateus a alegria de viver não constituía pecado, e também não acreditava na futilidade completa, tal como não acreditava em perfeições ou imperfeições absolutas; apesar de lugar comum, ele acreditava na importância desses conceitos que lhe permitia vislumbrar inúmeras nuances em cada pessoa que encontrava, com a consciência de que, ainda assim, nem de si próprio conseguiria nunca saber tudo o que era importante. Assim, quando o seu amigo Diogo demonstrou mais seriedade do que aquela a que o tinha habituado, Mateus percebeu que algo importante se passava com o amigo, mas não conseguiu vislumbrar a mais pequena ideia do que se tratava. Apesar disso, percebia que esse momento prenunciava um daqueles rasgos de sensibilidade que ele já percebera existirem por detrás da maluqueira, aquelas tristezas escondidas atrás de…coisa nenhuma… E mais uma vez, não é pecado gostar de alguém, seja de quem for, só porque não tem o nosso sorriso compreensivo, as nossas “tretas” profundas e a nossa vida comedida. Não, o pecado não existe, nem no Mateus, nem no Diogo. Mateus admite que o Diogo o fascina e jamais explicará a alguém a razão, porque simplesmente não precisa, para ele a amizade não se explica, vive-se, e Mateus não sente vontade de quebrar o seu palácio de cristal explicando o que já percebeu de profundo atrás de toda aquela leveza… neste caso, a sustentável leveza de um ser mais profundo do que aparenta…
-“Mas não vamos jantar? Ou preferes fazer qualquer coisa aqui?”
-“Não… estava a pensar numa coisa… acabei de fazer algo que tu jamais farias, eu sei…” – sentou-se na cadeira e o playboy não estava lá, era mesmo o Diogo, o Diogo que se escondia afincadamente de todos – “eu li o trabalho que estás a fazer! Quer dizer, fui à tua procura ao escritório, não estavas lá, tive curiosidade, li o que tinhas no computador… não, não estou a justificar o que não tem explicação, tu conheces-me, está errado mas confesso que não resisti…”
Mateus ficou sério por uns segundos… melhor dizendo, o Mateus continuou sério como sempre foi, embora por um ou dois segundos o seu olhar tenha parecido um pouco mais escuro. No entanto, quando voltou a falar, não existia nenhum tipo de zanga nem no olhar nem na voz: “não o faria, mas és meu amigo, não te escondi que pretendia escrever um novo trabalho…embora não, não o fizesse! Mas também – deu uma gargalhadinha, acomodou-se, bebeu um golo de whisky - não me estou a ver a ler à revelia o que tu não escreves!”
A tentativa de Mateus de desdramatizar a atitude do amigo parecia, no entanto, não estar a resultar; Diogo continuava sério, e, pior do que isso, surgiu-lhe no rosto uma certa expressão de mágoa: “ah, então é isso…o Diogo não é páreo para ti…”
Mateus estava agora bastante preocupado; não tivera nunca intenção de desvalorizar o amigo, mas não são as intenções que importam mas as consequências que os nossos actos provocam nos outros…afinal, que importância pode ter a nossa boa intenção quando fazemos qualquer coisa, se isso magoa aqueles a quem a nossa boa intenção se dirige? E enquanto um turbilhão de dúvidas sobre si próprio tomava conta da sua mente, ouve a voz calma: “ eu sei que não tinhas intenção.”
-“Desculpa, nunca me passou pela cabeça…” – o amigo interrompeu-o, desvalorizando ele, agora, a situação.
-“Apercebi-me mais uma vez, de uma característica dos teus trabalhos…bom, não sei se é uma característica, mas tu és bastante cuidadoso em não deixar transparecer a tua formação e experiência profissional no que escreves. Não posso deixar de pensar qual será o motivo…”
Mateus estava um pouco perplexo: “Não existe um verdadeiro cuidado em escondê-lo, embora prefira dissociar esta actividade da actividade profissional, por sentir, desta forma, mais liberdade para criar, e talvez também porque assim posso evitar que as pessoas que lêem os meus trabalhos fiquem condicionadas por essa informação. Mas o que é que te perturba em relação a isto?”
O Diogo estava sério havia mais do que cinco minutos o que era preocupante por si próprio.”Tu não achas um pouco…enfim, desonesto, de um certo ponto de vista, ocultares a tua formação profissional quando ela se reflecte nos teus trabalhos? Será que isso não traduz um problema teu perante a possibilidade de ser avaliado através do que escreves? Ou da avaliação dos teus trabalhos ser mais exigente pelo facto de teres uma determinada formação profissional?”A esta altura Diogo serve-se de um pouco mais de whisky; Mateus está a ouvi-lo e percebe pela sua vivacidade, pelo brilho dos olhos, que não vai ficar por aqui.”Há situações em que essa informação não é relevante, ou não é tão relevante; na tua situação é importante, não te parece? Imagina que és um professor, um advogado, um contabilista…Apesar de todas as nossas experiências serem transportadas para o que fazemos, o teu caso é um daqueles em que essa informação tem importância acrescida mas que, também por isso, acarreta mais riscos face à avaliação a que todos estamos sujeitos, quando expomos o que fazemos à apreciação dos outros. Concretamente em relação aos teus trabalhos, assinados por um profissional de outra área qualquer, por exemplo de qualquer uma das que citei, a avaliação vai incidir muito em aspectos como o conhecimento profundo do ser humano, uma sensibilidade em dose adequada, blá blá blá concordas?”
-“Claro, continua.”À relativa surpresa inicial, esta conversa tinha dado lugar, no espírito de Mateus, a um curto mas intenso passeio pelas suas próprias alamedas, alamedas cuja existência ignorava e que, guiado pelo Diogo, acabava de descobrir, iniciando acto contínuo a sua exploração.
-“Então, no momento em que assumires a tua formação profissional, o teu trabalho vai ser avaliado com um critério de exigência maior do que até agora, concordas? O excelente trabalho que tens feito deixará de ser …tão surpreendente! É isso que te assusta?” – Mateus não pode evitar de entender o ponto de vista do Diogo. No entanto, e não sendo essa a verdadeira razão da sua opção, em termos de forma de apresentação de trabalho, tentou explicá-lo, com a calma que lhe era peculiar: “Compreendo o teu ponto de vista, Diogo, sem dúvida, mas se não forneço informações acerca do autor, é apenas porque, apesar de ser sempre uma construção pessoal, um livro, na minha perspectiva, deve ser avaliado pela sua capacidade ou incapacidade de provocar no eventual leitor, uma reflexão sobre si próprio, mais um ponto de partida para uma nova viagem através de si próprio, mais um momento de exploração da sua própria identidade… Deste ponto de vista, o autor do livro não é protagonista deste processo; o verdadeiro protagonismo divide-se entre o livro e o leitor, um porque adensa no leitor o conhecimento de si próprio, outro porque ultrapassa o próprio livro, através do seu estímulo, mas distanciando-se dele, numa recriação pessoal desse ponto de partida que o aproxima um pouco mais de si próprio …onde está a grande importância de um escritor, para além de ter ou não a capacidade construir um trabalho que desperte cada leitor para si mesmo? Que importância tem para quem lê, saber o que faz o autor do livro se ele não quiser dar-se a conhecer? Se for bem sucedido na sua intenção, será a primeira peça do puzzle a ser ultrapassada, e isso acontece no exacto momento em que o livro mostra alcançar o objectivo do seu criador original, do primeiro, apenas...Eu sinto mais liberdade de espírito escrevendo sem me apresentar, mas acredito que cada trabalho deve ser avaliado pelas tais capacidades que pode ou não ter, independentemente de factores que penso não serem relevantes.
-“ Visto dessa forma talvez tenhas razão. A propósito do teu livro, a única vez que tu falaste sobre a intenção de o escrever - aqui, o olhar era malicioso ao ponto da Mateus estar à espera de qualquer coisa, até da maior maluqueira - , talvez tenha contribuído para aguçar a minha curiosidade, hoje; Tu pretendes partir do facto de que todos somos produtos de nós e da influência exercida pelos outros, que nós por nossa vez também influenciamos, é assim?”
“Sim, como ponto de partida sim…Mas como, no que se refere de uma forma mais consistente, à nossa própria construção, para mim são os Amigos os nossos principais co-autores, tal como nós somos os deles, pelo afecto, respeito e a confiança que propicia a mais desagradável das verdades, de forma que não magoa mas nos faz pensar no que somos e não sabemos, no que ainda não somos e de que nunca sentiríamos a falta, se não fossem os outros, os tais que nos rodeiam e que vêem as nossas sombras, e não se calam; só dessa forma nós podemos tentar transformar essas sombras num pouco mais de luz, espalhar a nossa luz um pouco mais longe, e crescermos todos, como sociedade doirada que pulsa, fortalece mas não calcula…”
“Então vais escrever sobre nós, os teus amigos?”
“Não tem que ser exactamente dessa forma, mas na realidade, partindo do ponto de vista que acabamos de falar, de uma forma ou de outra, estarão presentes. É claro que pode haver presenças mais marcantes ou menos marcantes, no contexto do que pretendo elaborar.”
“Não é uma história sobre os teus amigos, então…”
“Não tem que ser uma história, embora possa passar por aí também; digamos que, e dentro da perspectiva de que falamos, se trata de mostrar a minha forma de ver a vida, e a forma como os que eu conheço bem, a vêem também…
Muitos pontos de vista através dos quais é possível olhar o mundo e as situações com que somos confrontados? Sim, e também deixar ver que todos começamos diferentes, e apesar da tal dinâmica de que falamos, permanecemos diferentes, diria até que cada vez mais diferentes uns dos outros e mais próximos cada um de si próprio.”
“ Se eu escrevesse alguma coisa sobre mim, assumindo-me com sou - e aqui surgiu-lhe no olhar uma espécie de alegria maldosa – serias capaz de a incluir no teu livro?” –Notava-se no seu rosto uma irreverência de criança, ao perceber o olhar incrédulo do amigo .- “Ou não estou ao teu nível?”
“Não sabia que tinhas vontade de … mas claro que sim!”
“Pensa bem, estou a dizer que vou escrever sobre mim, na primeira pessoa. Não estás assustado?” – a gargalhada de Mateus incitou-o a prosseguir - “ vou falar sobre o que penso ser o melhor da vida : miúdas, viagens, amigos…e não
me vou preocupar com os juízos de valor que isso vai provocar. Então?”
- A esta altura, Mateus já estava deliciado com a ideia embora isso o pudesse colocar à altura da loucura do Diogo: “um capítulo será teu, mãos à obra!”
Diogo, já esquecido do jantar, foi embora e quando Mateus se levantou para ir trabalhar nas suas histórias, ainda sorria…Diogo poderia não ter muitas coisas sobre o que falar para além do que assumia, e na verdade Mateus já não acreditava nisso, mas seria sempre, e nisso, Mateus acreditava, uma lufada de ar fresco…escreveria algo profundo e leve, ao mesmo tempo, seria sempre na primeira pessoa…e seria, indubitavelmente mais divertido do que as suas histórias… sobre a vida dos outros…
A casa está em silêncio, a amizade é de longa data, a entrada é franca. O escritório, local onde o amigo passa a maior parte do seu tempo, é o primeiro local para onde se dirige. Mateus não se encontra lá; no computador, Diogo apercebe-se de um trabalho em curso: “ah, o novo trabalho do Mateus!” A esta altura, a curiosidade era já muito patente no olhar acutilante de Diogo que se deteve apenas um segundo, antes de considerar que a amizade era grande o suficiente para permitir a invasão…
Senta-se em frente ao écran e começa a ler. Alguns minutos depois, com o olhar apreensivo, pára, recosta-se na cadeira, os olhos muito azuis parecem escurecer…De repente levanta-se, dirige-se às escadas e acede à varanda, no 1º andar; o amigo está ali, sentado, à frente de um whisky, o olhar poisado na paisagem como se estivesse olhando através dela…
-“Mateus!”
-“Diogo! Desculpa” – a expressão de Mateus era quase assustada, parecia ter sido interrompido abruptamente no meio de uma qualquer viagem – “Esqueci-me completamente das horas…vou só pegar o blusão e podemos ir.”
-“Espera um pouco Mateus…” – o seu olhar, o olhar do seu amigo Diogo estava mais sério do que era hábito, sentou-se à sua frente e parecia… um pouco mais o Diogo que ele, Mateus, adivinhava, do que o que se revelava todos os dias, à vista de todos…o bonitão bem sucedido profissionalmente, que não deixava escapar um fim-de-semana, no seu próprio iate, sempre em companhias deslumbrantes, alegre e deslizante, estava sério…
Na verdade, Mateus já tinha percebido que havia mais Diogo do que ele mostrava através dos óculos de sol, mas embora o fascinasse a possibilidade dessa revelação, não constituía para ele um problema a aparente superficialidade do amigo. Para Mateus, não era importante responder a questões como as que lhe eram recorrentemente colocadas quando se falava de Diogo; um sorriso, perante questões como “não sei como consegues ser amigo daquele tipo”,”não tem nada em comum contigo”, “não passa de um playboy”, era para Mateus a única resposta possível, porque não tinha sentido nunca necessidade de justificar a amizade, fosse por quem fosse, com argumentos de qualquer tipo; para Mateus, a amizade entre as pessoas acontecia num primeiro momento sem razões concretas, antes por puro acaso, empatia que pode ou não consolidar-se… e depois vai-se construindo em constante interacção, alheia a questões que lhe são irrelevantes, até que se transforma mesmo em amizade, aquela, a única digna desse nome, em que se aceita o outro tal como é sem que haja a pretensão de mudar uma vírgula… Claro que, para ele, a amizade também não era a elegia constante um do outro, nem incapacidade de agitar, não era uma relação morta ou um lago de águas paradas; pelo contrário, era uma relação dinâmica em que tudo o que é importante para o crescimento de cada um é discutível, e dessa forma a amizade se renovava a cada passo, a cada silêncio (entre verdadeiros amigos, podem partilhar-se silêncios mais significativos do que certas conversas que se pretendem inteligentes e férteis), mas em que o nível de respeito é o mais alto, independentemente de todas as variáveis individuais existentes… Assim, para Mateus, a aparente leveza do amigo tinha contribuído para reflectir sobre si próprio ou, dizendo de outra forma, tinha contribuído, como é natural, para a sua construção pessoal, para um aprofundamento do seu auto-conhecimento, para uma maior consciência da sua identidade e, consequente e previsivelmente, tinha contribuído também para o aprofundamento da relação de amizade entre os dois…Mais uma forma silenciosa de crescer na relação com os outros e consigo próprio.
Não, para Mateus a alegria de viver não constituía pecado, e também não acreditava na futilidade completa, tal como não acreditava em perfeições ou imperfeições absolutas; apesar de lugar comum, ele acreditava na importância desses conceitos que lhe permitia vislumbrar inúmeras nuances em cada pessoa que encontrava, com a consciência de que, ainda assim, nem de si próprio conseguiria nunca saber tudo o que era importante. Assim, quando o seu amigo Diogo demonstrou mais seriedade do que aquela a que o tinha habituado, Mateus percebeu que algo importante se passava com o amigo, mas não conseguiu vislumbrar a mais pequena ideia do que se tratava. Apesar disso, percebia que esse momento prenunciava um daqueles rasgos de sensibilidade que ele já percebera existirem por detrás da maluqueira, aquelas tristezas escondidas atrás de…coisa nenhuma… E mais uma vez, não é pecado gostar de alguém, seja de quem for, só porque não tem o nosso sorriso compreensivo, as nossas “tretas” profundas e a nossa vida comedida. Não, o pecado não existe, nem no Mateus, nem no Diogo. Mateus admite que o Diogo o fascina e jamais explicará a alguém a razão, porque simplesmente não precisa, para ele a amizade não se explica, vive-se, e Mateus não sente vontade de quebrar o seu palácio de cristal explicando o que já percebeu de profundo atrás de toda aquela leveza… neste caso, a sustentável leveza de um ser mais profundo do que aparenta…
-“Mas não vamos jantar? Ou preferes fazer qualquer coisa aqui?”
-“Não… estava a pensar numa coisa… acabei de fazer algo que tu jamais farias, eu sei…” – sentou-se na cadeira e o playboy não estava lá, era mesmo o Diogo, o Diogo que se escondia afincadamente de todos – “eu li o trabalho que estás a fazer! Quer dizer, fui à tua procura ao escritório, não estavas lá, tive curiosidade, li o que tinhas no computador… não, não estou a justificar o que não tem explicação, tu conheces-me, está errado mas confesso que não resisti…”
Mateus ficou sério por uns segundos… melhor dizendo, o Mateus continuou sério como sempre foi, embora por um ou dois segundos o seu olhar tenha parecido um pouco mais escuro. No entanto, quando voltou a falar, não existia nenhum tipo de zanga nem no olhar nem na voz: “não o faria, mas és meu amigo, não te escondi que pretendia escrever um novo trabalho…embora não, não o fizesse! Mas também – deu uma gargalhadinha, acomodou-se, bebeu um golo de whisky - não me estou a ver a ler à revelia o que tu não escreves!”
A tentativa de Mateus de desdramatizar a atitude do amigo parecia, no entanto, não estar a resultar; Diogo continuava sério, e, pior do que isso, surgiu-lhe no rosto uma certa expressão de mágoa: “ah, então é isso…o Diogo não é páreo para ti…”
Mateus estava agora bastante preocupado; não tivera nunca intenção de desvalorizar o amigo, mas não são as intenções que importam mas as consequências que os nossos actos provocam nos outros…afinal, que importância pode ter a nossa boa intenção quando fazemos qualquer coisa, se isso magoa aqueles a quem a nossa boa intenção se dirige? E enquanto um turbilhão de dúvidas sobre si próprio tomava conta da sua mente, ouve a voz calma: “ eu sei que não tinhas intenção.”
-“Desculpa, nunca me passou pela cabeça…” – o amigo interrompeu-o, desvalorizando ele, agora, a situação.
-“Apercebi-me mais uma vez, de uma característica dos teus trabalhos…bom, não sei se é uma característica, mas tu és bastante cuidadoso em não deixar transparecer a tua formação e experiência profissional no que escreves. Não posso deixar de pensar qual será o motivo…”
Mateus estava um pouco perplexo: “Não existe um verdadeiro cuidado em escondê-lo, embora prefira dissociar esta actividade da actividade profissional, por sentir, desta forma, mais liberdade para criar, e talvez também porque assim posso evitar que as pessoas que lêem os meus trabalhos fiquem condicionadas por essa informação. Mas o que é que te perturba em relação a isto?”
O Diogo estava sério havia mais do que cinco minutos o que era preocupante por si próprio.”Tu não achas um pouco…enfim, desonesto, de um certo ponto de vista, ocultares a tua formação profissional quando ela se reflecte nos teus trabalhos? Será que isso não traduz um problema teu perante a possibilidade de ser avaliado através do que escreves? Ou da avaliação dos teus trabalhos ser mais exigente pelo facto de teres uma determinada formação profissional?”A esta altura Diogo serve-se de um pouco mais de whisky; Mateus está a ouvi-lo e percebe pela sua vivacidade, pelo brilho dos olhos, que não vai ficar por aqui.”Há situações em que essa informação não é relevante, ou não é tão relevante; na tua situação é importante, não te parece? Imagina que és um professor, um advogado, um contabilista…Apesar de todas as nossas experiências serem transportadas para o que fazemos, o teu caso é um daqueles em que essa informação tem importância acrescida mas que, também por isso, acarreta mais riscos face à avaliação a que todos estamos sujeitos, quando expomos o que fazemos à apreciação dos outros. Concretamente em relação aos teus trabalhos, assinados por um profissional de outra área qualquer, por exemplo de qualquer uma das que citei, a avaliação vai incidir muito em aspectos como o conhecimento profundo do ser humano, uma sensibilidade em dose adequada, blá blá blá concordas?”
-“Claro, continua.”À relativa surpresa inicial, esta conversa tinha dado lugar, no espírito de Mateus, a um curto mas intenso passeio pelas suas próprias alamedas, alamedas cuja existência ignorava e que, guiado pelo Diogo, acabava de descobrir, iniciando acto contínuo a sua exploração.
-“Então, no momento em que assumires a tua formação profissional, o teu trabalho vai ser avaliado com um critério de exigência maior do que até agora, concordas? O excelente trabalho que tens feito deixará de ser …tão surpreendente! É isso que te assusta?” – Mateus não pode evitar de entender o ponto de vista do Diogo. No entanto, e não sendo essa a verdadeira razão da sua opção, em termos de forma de apresentação de trabalho, tentou explicá-lo, com a calma que lhe era peculiar: “Compreendo o teu ponto de vista, Diogo, sem dúvida, mas se não forneço informações acerca do autor, é apenas porque, apesar de ser sempre uma construção pessoal, um livro, na minha perspectiva, deve ser avaliado pela sua capacidade ou incapacidade de provocar no eventual leitor, uma reflexão sobre si próprio, mais um ponto de partida para uma nova viagem através de si próprio, mais um momento de exploração da sua própria identidade… Deste ponto de vista, o autor do livro não é protagonista deste processo; o verdadeiro protagonismo divide-se entre o livro e o leitor, um porque adensa no leitor o conhecimento de si próprio, outro porque ultrapassa o próprio livro, através do seu estímulo, mas distanciando-se dele, numa recriação pessoal desse ponto de partida que o aproxima um pouco mais de si próprio …onde está a grande importância de um escritor, para além de ter ou não a capacidade construir um trabalho que desperte cada leitor para si mesmo? Que importância tem para quem lê, saber o que faz o autor do livro se ele não quiser dar-se a conhecer? Se for bem sucedido na sua intenção, será a primeira peça do puzzle a ser ultrapassada, e isso acontece no exacto momento em que o livro mostra alcançar o objectivo do seu criador original, do primeiro, apenas...Eu sinto mais liberdade de espírito escrevendo sem me apresentar, mas acredito que cada trabalho deve ser avaliado pelas tais capacidades que pode ou não ter, independentemente de factores que penso não serem relevantes.
-“ Visto dessa forma talvez tenhas razão. A propósito do teu livro, a única vez que tu falaste sobre a intenção de o escrever - aqui, o olhar era malicioso ao ponto da Mateus estar à espera de qualquer coisa, até da maior maluqueira - , talvez tenha contribuído para aguçar a minha curiosidade, hoje; Tu pretendes partir do facto de que todos somos produtos de nós e da influência exercida pelos outros, que nós por nossa vez também influenciamos, é assim?”
“Sim, como ponto de partida sim…Mas como, no que se refere de uma forma mais consistente, à nossa própria construção, para mim são os Amigos os nossos principais co-autores, tal como nós somos os deles, pelo afecto, respeito e a confiança que propicia a mais desagradável das verdades, de forma que não magoa mas nos faz pensar no que somos e não sabemos, no que ainda não somos e de que nunca sentiríamos a falta, se não fossem os outros, os tais que nos rodeiam e que vêem as nossas sombras, e não se calam; só dessa forma nós podemos tentar transformar essas sombras num pouco mais de luz, espalhar a nossa luz um pouco mais longe, e crescermos todos, como sociedade doirada que pulsa, fortalece mas não calcula…”
“Então vais escrever sobre nós, os teus amigos?”
“Não tem que ser exactamente dessa forma, mas na realidade, partindo do ponto de vista que acabamos de falar, de uma forma ou de outra, estarão presentes. É claro que pode haver presenças mais marcantes ou menos marcantes, no contexto do que pretendo elaborar.”
“Não é uma história sobre os teus amigos, então…”
“Não tem que ser uma história, embora possa passar por aí também; digamos que, e dentro da perspectiva de que falamos, se trata de mostrar a minha forma de ver a vida, e a forma como os que eu conheço bem, a vêem também…
Muitos pontos de vista através dos quais é possível olhar o mundo e as situações com que somos confrontados? Sim, e também deixar ver que todos começamos diferentes, e apesar da tal dinâmica de que falamos, permanecemos diferentes, diria até que cada vez mais diferentes uns dos outros e mais próximos cada um de si próprio.”
“ Se eu escrevesse alguma coisa sobre mim, assumindo-me com sou - e aqui surgiu-lhe no olhar uma espécie de alegria maldosa – serias capaz de a incluir no teu livro?” –Notava-se no seu rosto uma irreverência de criança, ao perceber o olhar incrédulo do amigo .- “Ou não estou ao teu nível?”
“Não sabia que tinhas vontade de … mas claro que sim!”
“Pensa bem, estou a dizer que vou escrever sobre mim, na primeira pessoa. Não estás assustado?” – a gargalhada de Mateus incitou-o a prosseguir - “ vou falar sobre o que penso ser o melhor da vida : miúdas, viagens, amigos…e não
me vou preocupar com os juízos de valor que isso vai provocar. Então?”
- A esta altura, Mateus já estava deliciado com a ideia embora isso o pudesse colocar à altura da loucura do Diogo: “um capítulo será teu, mãos à obra!”
Diogo, já esquecido do jantar, foi embora e quando Mateus se levantou para ir trabalhar nas suas histórias, ainda sorria…Diogo poderia não ter muitas coisas sobre o que falar para além do que assumia, e na verdade Mateus já não acreditava nisso, mas seria sempre, e nisso, Mateus acreditava, uma lufada de ar fresco…escreveria algo profundo e leve, ao mesmo tempo, seria sempre na primeira pessoa…e seria, indubitavelmente mais divertido do que as suas histórias… sobre a vida dos outros…