10.4.07

QUASE BELA

Este é um daqueles momentos da vida em que se torna inevitável falar sobre alguém ou alguma coisa de que nunca se quis falar antes, mas confesso que apesar da necessidade visceral de o fazer, é difícil falar sobre “ela”. Nunca admiti uma “ela” na minha vida. Nem mesmo “ela”! Ela era demasiado louca, demasiado profunda, demasiado superficial, demasiado revoltada, demasiado tolerante, demasiado…real… não, não me perguntem porquê mas esta foi sempre a forma como a vi, rude e doce, romântica e sarcástica, feminina e masculina, louca e racional, presente… e perdida…
Não, nunca poderia ter falado dela, até hoje. Não teria sabido o que dizer, teria parecido um idiota tropeçando nas palavras, perdendo o fio à meada, tal como está a acontecer agora, tal como ela sempre conseguiu fazer-me…
Ela quase não tinha nome. Ou tinha tantos que era quase impossível identificá-la, apesar de todos fazerem realmente parte dela. Ela tinha um nome, usava outro, tinha preferido ter um que não tinha; ao longo do tempo, quis ser uma pessoa que não era, gostou de ser quem era, mas a sua vida não passou de um turbilhão de coisas que queria ser, que sentia, que não queria e vivia, de sonhos que construía e vivia no seu espírito e não conseguiu, até determinado momento, concretizar. Dizia-se livre, mas mais do que livre, era semelhante a um velho gato de telhado, vadio, que teimava em miar à lua, sabendo que ela não o ouvia…”Ela” invadiu de terrores as minhas noites, engrandeceu alguns dos meus dias, fez-me pensar, fez-me amá-la, sem querer, mas sempre fui suficientemente racional para a amar, de alguma forma, mas nunca a querer, pois ela era a própria tormenta com que nunca saberia lidar. Ela era alegria da mais esfusiante, e era a negritude mais profunda. É verdade que era honesta. Foi muitas vezes franca até à crueldade para aqueles que mais amava, outras, complacente até à estupidez mais profunda. Ela era tudo, um turbilhão de emoções positivas e negativas, era toda dar, era toda receber, e a verdade é que ninguém estava preparado para ela…
Um dia quis dar voz a um dos sonhos que ao logo da vida tentou preservar e partiu de uma forma igual a ela própria: rápida, intensa e sem viagem de volta marcada. Atrás de si deixou pessoas que acharam óptimo o sossego, que lhe sentiram a falta, que a detestavam e que a amavam. Profunda e incondicionalmente,,,
Hoje está ali, A 100 metros, E não quero vê-la. Estão lá, também, as 9, 10 ou 11 pessoas que a conheceram pelos diversos nomes que teve e que, cada uma à sua maneira a amaram. Eu…eu não quero estar longe, mas também não quero estar demasiado perto. Não quero assumir que está perto porque não quero assumir que para quem tinha tudo dentro de si nada mais é possível,,,
Nunca a tive, mas conheci-a, e isso era o máximo que alguém poderia alcançar. Parece estranho? No entanto, podia-se amá-la, ser-se amado por ela mas nunca se poderia tê-la, e talvez até quem a amasse não a quisesse, pela impossibilidade natural desse facto…
Está ali. Não, não quero vê-la. Não me importa que estejam com violas e cantem, e riam, como ela teria gostado se pudesse ver, se os olhos estão marejados de lágrimas tal como os meus, que me recuso a vê-la. Para mim, neste momento, está apenas tão longe como o esteve a 2 centímetros da minha pele, e sei que nunca esteve muito mais próxima do que isso, tal como sei que amou estas 12 pessoas, mais todas as outras que se cruzaram com ela na rua, e no entanto, soube sempre que há momentos que são solitários…como este seu momento. Como este meu momento. Vou-me embora. Enquanto todos cantam como ela gostaria, e deixam rolar as lágrimas que ela não pode ver. Vou-me embora. E durante o caminho para casa, onde me encontrarei com ela longe desta gente, já terei a sua companhia, já estará comigo nas nossas horas secretas, cheias do meu amor e às vezes da minha incompreensão, do seu amor, da sua revolta, da sua decepção, da sua solidão…da sua vida e da sua morte…