ANTES QUE ANOITEÇA...
Decidi fazer uma surpresa a um amigo, com a ajuda de outro amigo. Acontece que o Mateus, o tal amigo que quero surpreender, está numa espécie de licença profissional com o intuito de escrever um livro. Como grandes amigos que somos, eu fui a primeira pessoa a saber um pouco sobre o que ele pretendia fazer. Acompanhei-o em todas as etapas da sua turbulência interior que acabaram por lhe despertar essa necessidade. Bom, na realidade, acompanhei-o nos momentos possíveis, que na sua maior parte foram constituídos por longos passeios à beira mar, em silêncio. Recordo que, por vezes, o meu olhar se cruzava com o seu, e percebia nele um turbilhão negro que deixava transparecer, paradoxalmente, clarões assustadoramente incandescentes. Acompanhei-o, partilhando alguns desses silêncios cheios de significado, mas sobre o trabalho interior que ele teve necessidade de exprimir através da escrita, apenas soube que o seu desejo era dar expressão a algumas reflexões pessoais e falar da vida… da vida como ele via através da sua vivência interior, e da vida que ele percebia através do olhar das pessoas que ia encontrando ao longo da sua vida…
Um dia destes, o Diogo, um amigo comum, disse-me com um olhar malicioso que ia dispensar o Mateus de fazer qualquer referência à vida vista através dos seus olhos, pois ia, ele próprio, falar da vida tal como ele, Diogo, a sentia…
A malícia advinha do facto de saber que todos os que o conhecemos parece vê-lo como um garotão, de sorriso deslumbrante, um bom amigo, mas leve e alegre, quase sempre acima dos problemas existenciais que assolam a maioria de nós, os seus amigos que às vezes são cinzentos, outras brancos, e outras ainda, amarelo - alaranjado…
Penso que o Diogo nos vai surpreender. Esperamos um capítulo azul - turquesa que é a cor do mar que ele adora e em nada se parece com o mar de que, por exemplo, eu e o Mateus tanto gostamos…Neste momento, apercebo-me de que falo do Mateus como se de mim própria se tratasse, e no entanto, se em muitos momentos isso pode ser verdade, outros há em que eu e o Mateus pouco temos em comum para além de uma grande, inexcedível ternura e cumplicidade…Isso tem muito que ver com o facto de termos, como todos, diferentes maneiras de viver a vida que valorizamos de igual maneira, e tendo ele, tal como eu, essa consciência, temo nem agora conseguir surpreendê-lo, verdadeiramente…
Vou começar pelo princípio. Sempre senti, de alguma forma, que o Mateus me via como alguém arredio, uma espécie de gato vadio que canta à lua em noites sem lua, que rema contra a maré. E tudo isso é apenas uma parte da verdade. Eu e o Mateus, ao longo do tempo fomo-nos identificando pelos valores que nos eram mais caros, fomos aprendendo a conhecer-nos de tal forma que as palavras podiam ser substituídas por um simples olhar, em muitas situações. Para além disso, unia-nos uma imensa cumplicidade de vida que conseguia ultrapassar uma diferença formal que podia ser vista como os próprios pólos de um continuum… Enquanto o Mateus, na sua inextinguível vontade de compreender e harmonizar, às vezes tolera o que para mim é intolerável, eu ao contrário, não perco uma oportunidade de “guerrear” pelo que acredito… Eu sei que para ele, sou excessiva. Jamais afivelei a máscara de quem concorda, quando não concordo. O Mateus, por seu lado, deixa passar os momentos inadequados e espera por momentos mais adequados, e por isso, mais frutíferos…
O Mateus não me pediu para participar no seu trabalho, e não, não acredito que a verdadeira razão tenha sido o facto de eu estar de partida para um sonho…conhecemo-nos demasiado para que seja possível acreditar nisso, ou ele acreditar que eu o penso, e quando num dos seus telefonemas me disse” se tiveres um bocadinho escreve alguma coisa para mim”, eu percebi o seu receio de que eu fosse tão agreste como sempre e não houvesse, no seu trabalho, espaço para mim, pelo risco de quebra de harmonia de um trabalho que todos os que o conhecem sabem ser importantíssimo para ele. Assim, pela primeira vez, decidi não aprofundar a questão, limitando a desculpar-me com o volume de trabalho que tinha, mas que apesar de verdadeiro, jamais limitaria a minha vontade de fazer qualquer outra coisa, muito menos se essa outra coisa fosse uma paixão de sempre. Quando o Diogo me disse que ia participar no trabalho do Mateus, soltou-se do meu espírito uma ideia brincalhona que nunca mais conseguiria prender… pelo contrário, combinei com o Diogo que quando entregasse o seu trabalho, entregaria também o meu, e que o Mateus só teria conhecimento da minha participação no momento em que recebesse o meu contributo. Os dados estavam lançados, e o temor do meu amigo Mateus não evitaria nada. Não, nunca afivelei máscaras, mas na minha relação com o Mateus, após as primeiras tentativas de ser total e cruamente sincera, percebi que ele me conhecia ao ponto de saber até onde eu poderia ir, e evitava-o por sentir essa exposição desnecessária. A rebelde, na realidade foi muitas vezes domada por quem nunca deixou de ser doce… Mas sim, admito que às vezes sou excessiva, talvez até um pouco louca. Não deixo passar situações que me agridam, agrido ao questionar quando não entendo, quando se trata de coisas para mim inultrapassáveis, mas a que a maioria das pessoas fecha os olhos, guarda na gaveta, guarda até outro momento que na maioria das vezes nunca vai acontecer… e tudo em nome da boa convivência, dos bons modos, da civilidade que eu não tenho, a que me recuso baixar pagando por isso todos os dias um pouco…Sim, sei que sou radical. Apesar de partilharmos valores, sou o que ele chama carinhosamente de “guerrilheira” enquanto ele é contido, agradável, e nunca abre fogo nem faz ondas… Pois, Mateus… gosto muito de ti, mas vejo-te como um peixinho num lago tranquilo. Não parado. Nunca parado. Mas nunca agitas as águas, nunca te desesperas, descontrolas, ou perdes…
Ao contrário de ti, que vives numa concha de porta aberta mas de onde nunca sais, eu não tenho concha, não tenho medo, sou curiosa, aguerrida, mas como sabes bem, também sou terna…
Eu sei que pretendes ter no teu trabalho olhares diferentes sobre a vida. Aqui, sem contares, tens o meu olhar azul, e branco, e preto, e cinzento, e amarelo alaranjado…
Sei que o nosso afecto nunca esteve em causa mas sempre tive a percepção nítida de que evitavas os meus excessos… O meu amigo conciliador nunca quis ser desagradável, evitando por isso a minha desagradibilidade. Conhecia-me, respeitava-me, mas evitava os meus labirintos mais profundos para não perturbar a sua própria harmonia; e eu sei, Mateus, que o fazias para que em momento algum houvesse um descontrolo que pudesse sequer questionar a imensa amizade que nos une. Porque tu sabes, tendo para isso bastado ler nos meus olhos como até hoje ninguém foi capaz, que o que acabo de escrever é verdade, é o que penso, sem te amar menos um milímetro. Mas nunca deixaste que o dissesse para não ter que dizer também o que pensavas de mim, para que desabafo nenhum nos beliscasse, apesar do afecto que sentimos um pelo outro. Hoje, Mateus, é um dia especial para mim e tu conheces-me, os dias especiais são-no e pronto, não tem que haver razão nenhuma para sê-lo. Sinto que hoje é o meu dia, que tenho que escrever o que sinto e que é a única verdade que te omiti, mas que conheces mesmo sem nunca a teres ouvido. E hoje mesmo, sabes como são as minhas loucas sensações de urgência, inexplicáveis e alucinantes, vou pôr este trabalho no correio para que o Diogo to possa entregar quando entregar o dele. E sei que quando isso acontecer—mal posso esperar para ler o seu trabalho - vais reconhecer que esta é uma prova do meu infinito carinho por ti…
Vou pegar o jipe e fazer 70 kms para pôr isto no correio porque para mim isso é urgente, amanhã para mim pode não fazer sentido, posso tentar pensar como tu e escrever sobre os pássaros bonitos e a terra vermelha, e os odores que me envolvem em paixão… e continuaria a ser tudo verdade… Até logo, Mateus, agora tenho que ir… antes que anoiteça e a urgência se esvaia… e deixe de fazer sentido o que para mim, hoje, é tão importante…
Um dia destes, o Diogo, um amigo comum, disse-me com um olhar malicioso que ia dispensar o Mateus de fazer qualquer referência à vida vista através dos seus olhos, pois ia, ele próprio, falar da vida tal como ele, Diogo, a sentia…
A malícia advinha do facto de saber que todos os que o conhecemos parece vê-lo como um garotão, de sorriso deslumbrante, um bom amigo, mas leve e alegre, quase sempre acima dos problemas existenciais que assolam a maioria de nós, os seus amigos que às vezes são cinzentos, outras brancos, e outras ainda, amarelo - alaranjado…
Penso que o Diogo nos vai surpreender. Esperamos um capítulo azul - turquesa que é a cor do mar que ele adora e em nada se parece com o mar de que, por exemplo, eu e o Mateus tanto gostamos…Neste momento, apercebo-me de que falo do Mateus como se de mim própria se tratasse, e no entanto, se em muitos momentos isso pode ser verdade, outros há em que eu e o Mateus pouco temos em comum para além de uma grande, inexcedível ternura e cumplicidade…Isso tem muito que ver com o facto de termos, como todos, diferentes maneiras de viver a vida que valorizamos de igual maneira, e tendo ele, tal como eu, essa consciência, temo nem agora conseguir surpreendê-lo, verdadeiramente…
Vou começar pelo princípio. Sempre senti, de alguma forma, que o Mateus me via como alguém arredio, uma espécie de gato vadio que canta à lua em noites sem lua, que rema contra a maré. E tudo isso é apenas uma parte da verdade. Eu e o Mateus, ao longo do tempo fomo-nos identificando pelos valores que nos eram mais caros, fomos aprendendo a conhecer-nos de tal forma que as palavras podiam ser substituídas por um simples olhar, em muitas situações. Para além disso, unia-nos uma imensa cumplicidade de vida que conseguia ultrapassar uma diferença formal que podia ser vista como os próprios pólos de um continuum… Enquanto o Mateus, na sua inextinguível vontade de compreender e harmonizar, às vezes tolera o que para mim é intolerável, eu ao contrário, não perco uma oportunidade de “guerrear” pelo que acredito… Eu sei que para ele, sou excessiva. Jamais afivelei a máscara de quem concorda, quando não concordo. O Mateus, por seu lado, deixa passar os momentos inadequados e espera por momentos mais adequados, e por isso, mais frutíferos…
O Mateus não me pediu para participar no seu trabalho, e não, não acredito que a verdadeira razão tenha sido o facto de eu estar de partida para um sonho…conhecemo-nos demasiado para que seja possível acreditar nisso, ou ele acreditar que eu o penso, e quando num dos seus telefonemas me disse” se tiveres um bocadinho escreve alguma coisa para mim”, eu percebi o seu receio de que eu fosse tão agreste como sempre e não houvesse, no seu trabalho, espaço para mim, pelo risco de quebra de harmonia de um trabalho que todos os que o conhecem sabem ser importantíssimo para ele. Assim, pela primeira vez, decidi não aprofundar a questão, limitando a desculpar-me com o volume de trabalho que tinha, mas que apesar de verdadeiro, jamais limitaria a minha vontade de fazer qualquer outra coisa, muito menos se essa outra coisa fosse uma paixão de sempre. Quando o Diogo me disse que ia participar no trabalho do Mateus, soltou-se do meu espírito uma ideia brincalhona que nunca mais conseguiria prender… pelo contrário, combinei com o Diogo que quando entregasse o seu trabalho, entregaria também o meu, e que o Mateus só teria conhecimento da minha participação no momento em que recebesse o meu contributo. Os dados estavam lançados, e o temor do meu amigo Mateus não evitaria nada. Não, nunca afivelei máscaras, mas na minha relação com o Mateus, após as primeiras tentativas de ser total e cruamente sincera, percebi que ele me conhecia ao ponto de saber até onde eu poderia ir, e evitava-o por sentir essa exposição desnecessária. A rebelde, na realidade foi muitas vezes domada por quem nunca deixou de ser doce… Mas sim, admito que às vezes sou excessiva, talvez até um pouco louca. Não deixo passar situações que me agridam, agrido ao questionar quando não entendo, quando se trata de coisas para mim inultrapassáveis, mas a que a maioria das pessoas fecha os olhos, guarda na gaveta, guarda até outro momento que na maioria das vezes nunca vai acontecer… e tudo em nome da boa convivência, dos bons modos, da civilidade que eu não tenho, a que me recuso baixar pagando por isso todos os dias um pouco…Sim, sei que sou radical. Apesar de partilharmos valores, sou o que ele chama carinhosamente de “guerrilheira” enquanto ele é contido, agradável, e nunca abre fogo nem faz ondas… Pois, Mateus… gosto muito de ti, mas vejo-te como um peixinho num lago tranquilo. Não parado. Nunca parado. Mas nunca agitas as águas, nunca te desesperas, descontrolas, ou perdes…
Ao contrário de ti, que vives numa concha de porta aberta mas de onde nunca sais, eu não tenho concha, não tenho medo, sou curiosa, aguerrida, mas como sabes bem, também sou terna…
Eu sei que pretendes ter no teu trabalho olhares diferentes sobre a vida. Aqui, sem contares, tens o meu olhar azul, e branco, e preto, e cinzento, e amarelo alaranjado…
Sei que o nosso afecto nunca esteve em causa mas sempre tive a percepção nítida de que evitavas os meus excessos… O meu amigo conciliador nunca quis ser desagradável, evitando por isso a minha desagradibilidade. Conhecia-me, respeitava-me, mas evitava os meus labirintos mais profundos para não perturbar a sua própria harmonia; e eu sei, Mateus, que o fazias para que em momento algum houvesse um descontrolo que pudesse sequer questionar a imensa amizade que nos une. Porque tu sabes, tendo para isso bastado ler nos meus olhos como até hoje ninguém foi capaz, que o que acabo de escrever é verdade, é o que penso, sem te amar menos um milímetro. Mas nunca deixaste que o dissesse para não ter que dizer também o que pensavas de mim, para que desabafo nenhum nos beliscasse, apesar do afecto que sentimos um pelo outro. Hoje, Mateus, é um dia especial para mim e tu conheces-me, os dias especiais são-no e pronto, não tem que haver razão nenhuma para sê-lo. Sinto que hoje é o meu dia, que tenho que escrever o que sinto e que é a única verdade que te omiti, mas que conheces mesmo sem nunca a teres ouvido. E hoje mesmo, sabes como são as minhas loucas sensações de urgência, inexplicáveis e alucinantes, vou pôr este trabalho no correio para que o Diogo to possa entregar quando entregar o dele. E sei que quando isso acontecer—mal posso esperar para ler o seu trabalho - vais reconhecer que esta é uma prova do meu infinito carinho por ti…
Vou pegar o jipe e fazer 70 kms para pôr isto no correio porque para mim isso é urgente, amanhã para mim pode não fazer sentido, posso tentar pensar como tu e escrever sobre os pássaros bonitos e a terra vermelha, e os odores que me envolvem em paixão… e continuaria a ser tudo verdade… Até logo, Mateus, agora tenho que ir… antes que anoiteça e a urgência se esvaia… e deixe de fazer sentido o que para mim, hoje, é tão importante…
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