11.4.07
SEM REDE
Vou quebrar a regra mais uma vez. Por ti, que sempre as aceitaste apenas para as poder quebrar. E dorme tranquila, porque te reconheci, porque me reconheci em tudo o que escreveste, e isso apenas confirma o que sentimos ambos e eu por vezes impedi que revelasses…
Neste momento, porque te amo tanto como me amaste, e não posso, tal como não pudeste dizer-me de viva voz o que acabei de ler mas sabia que pensavas, resta-me escrever o que não vais poder ler, mas também sabias que eu pensava… Hoje, em homenagem ao nosso amor, que sempre o foi, sem nunca ter sido plenamente vivido, vou dizer-te tudo o que ficou por dizer, em palavras, tal como tu própria o farias, como tantas vezes quiseste ouvir, nem que fosse para me dizeres também o que sempre soube que querias dizer-me…Vou ser como tu. Para resgatar a única verdade que nos neguei, e que hoje, sabendo que não estás cá, questiono se terá valido a pena…Teríamos ficado mais próximos? Teria sido demasiado duro? Só te posso dizer do mais profundo de mim, que não poderia ter sido nunca, em nenhum momento, mais verdadeiro do que sempre foi…porque ao contrário de ti, o que os nossos olhos falam, para mim, torna as palavras algo desnecessárias. Eu sei… eu sei que tens os olhos que melhor sabem ler ao cimo da terra, mas apesar disso adoras as palavras…Por ti, só por ti, para que no teu conceito de verdade a verdade se erga entre nós sem dúvidas que nunca existiram, eu vou dizer-te o que já sabes sem que nunca to tivesse dito…e não tive nunca mais amor por ti, do que neste momento…
Sim, para ti sou um peixinho. Felizmente não um peixinho dourado, apenas um peixinho…e sim, sempre pensei que na vida o mais importante eram os princípios que te davam brilho ao olhar, e também é verdade que sempre partilhamos os valores mais importantes para ambos, não porque mos tivesses dado a conhecer, mas porque, tal como aconteceu contigo, já eram meus antes de te conhecer. Sim, sempre te percebi como a tal “guerrilheira” de que falaste. Para ti não era suficientemente importante leres nos meus olhos que era como tu! Tu desafiavas-me com o teu olhar para assumir com palavras o que-- desculpa -- eu não considerava tão importante dizer quanto sentir! É verdade. Não faz parte da minha forma de vida discussões estéreis embora saiba que, para ti, discussões nunca tenham sido estéreis. Mas lembras-te das noites em que, após batalhas que não te acrescentaram nada para além da força que já tinhas, teres chorado baixinho aninhada em mim, porque a única coisa que tinhas ganho, na verdade, tinha sido a decepção, o desencanto?
Não, não me envergonho de ser como sou. E confesso, ainda hoje te amo e já não estás estas aqui e apesar de te ter respeitado como poucos o fizeram, tu mereceste sempre mais. Apesar, ou pelo facto de teres sido sempre dura com quem amavas, por considerares que ninguém te merecia menos do que isso, por considerares que os que amavas não te mereciam menos do que a verdade, tal como a sentias por mais dura que parecesse…sempre te importaste, nunca passaste ao lado de quem amavas… e sempre amaste mais do que parecia possível… das mais diversas maneiras…
Não, tu não foste nunca um peixinho. Para mim, eras uma guerrilheira asfixiada na sua própria teia de pequenas batalhas. Lembras-te das tuas guerrinhas contra o preconceito? Vou confessar-te, algumas vezes pensei que esse era o teu único preconceito: “não ter preconceitos”. E sei que houve alguma injustiça nesse pensamento; talvez tenhas razão quando dizes que vivo numa concha aberta de onde nunca saio, mas também penso que o teu grande problema talvez tenha sido caminhar sem pensar num lugar para onde pudesses voltar, um porto de abrigo,,, desprotegida, exposta à luz e às intempéries também, não te permitiste um espaço de descanso, um porto seguro…Para onde querias ir quando as tuas forças se esgotassem? Ou… será que foste para o teu porto seguro que escondeste de todos, quando as tuas forças se esgotaram e escondeste isso de todos? Sim, estou a ser como tu. Sinto-me neste momento mais como tu do que como eu próprio. Revoltado porque era cedo, revoltado porque não tinhas dado tudo quanto tinhas para dar. Eu sei que deste de ti tudo quanto tinhas para dar, sempre…não haveria mais, já? Será que estou a ser tão como tu que acredito que tinhas que ser inesgotável? Que foi injusto para mim teres saído do teu sonho, o teu casulo, afinal, tal como a minha concha, para fazeres 70kms, pôr um envelope no correio…e na volta, teres-te distraído de tal forma que tivesses deixado a noite derramar o seu manto sobre ti e te apagasse? Será que, como única consolação me resta acreditar ter sido um pouco do nosso amor mal escondido que te tenha feito pensar em mim nos últimos segundos que antecederam o anoitecer?
Neste momento, porque te amo tanto como me amaste, e não posso, tal como não pudeste dizer-me de viva voz o que acabei de ler mas sabia que pensavas, resta-me escrever o que não vais poder ler, mas também sabias que eu pensava… Hoje, em homenagem ao nosso amor, que sempre o foi, sem nunca ter sido plenamente vivido, vou dizer-te tudo o que ficou por dizer, em palavras, tal como tu própria o farias, como tantas vezes quiseste ouvir, nem que fosse para me dizeres também o que sempre soube que querias dizer-me…Vou ser como tu. Para resgatar a única verdade que nos neguei, e que hoje, sabendo que não estás cá, questiono se terá valido a pena…Teríamos ficado mais próximos? Teria sido demasiado duro? Só te posso dizer do mais profundo de mim, que não poderia ter sido nunca, em nenhum momento, mais verdadeiro do que sempre foi…porque ao contrário de ti, o que os nossos olhos falam, para mim, torna as palavras algo desnecessárias. Eu sei… eu sei que tens os olhos que melhor sabem ler ao cimo da terra, mas apesar disso adoras as palavras…Por ti, só por ti, para que no teu conceito de verdade a verdade se erga entre nós sem dúvidas que nunca existiram, eu vou dizer-te o que já sabes sem que nunca to tivesse dito…e não tive nunca mais amor por ti, do que neste momento…
Sim, para ti sou um peixinho. Felizmente não um peixinho dourado, apenas um peixinho…e sim, sempre pensei que na vida o mais importante eram os princípios que te davam brilho ao olhar, e também é verdade que sempre partilhamos os valores mais importantes para ambos, não porque mos tivesses dado a conhecer, mas porque, tal como aconteceu contigo, já eram meus antes de te conhecer. Sim, sempre te percebi como a tal “guerrilheira” de que falaste. Para ti não era suficientemente importante leres nos meus olhos que era como tu! Tu desafiavas-me com o teu olhar para assumir com palavras o que-- desculpa -- eu não considerava tão importante dizer quanto sentir! É verdade. Não faz parte da minha forma de vida discussões estéreis embora saiba que, para ti, discussões nunca tenham sido estéreis. Mas lembras-te das noites em que, após batalhas que não te acrescentaram nada para além da força que já tinhas, teres chorado baixinho aninhada em mim, porque a única coisa que tinhas ganho, na verdade, tinha sido a decepção, o desencanto?
Não, não me envergonho de ser como sou. E confesso, ainda hoje te amo e já não estás estas aqui e apesar de te ter respeitado como poucos o fizeram, tu mereceste sempre mais. Apesar, ou pelo facto de teres sido sempre dura com quem amavas, por considerares que ninguém te merecia menos do que isso, por considerares que os que amavas não te mereciam menos do que a verdade, tal como a sentias por mais dura que parecesse…sempre te importaste, nunca passaste ao lado de quem amavas… e sempre amaste mais do que parecia possível… das mais diversas maneiras…
Não, tu não foste nunca um peixinho. Para mim, eras uma guerrilheira asfixiada na sua própria teia de pequenas batalhas. Lembras-te das tuas guerrinhas contra o preconceito? Vou confessar-te, algumas vezes pensei que esse era o teu único preconceito: “não ter preconceitos”. E sei que houve alguma injustiça nesse pensamento; talvez tenhas razão quando dizes que vivo numa concha aberta de onde nunca saio, mas também penso que o teu grande problema talvez tenha sido caminhar sem pensar num lugar para onde pudesses voltar, um porto de abrigo,,, desprotegida, exposta à luz e às intempéries também, não te permitiste um espaço de descanso, um porto seguro…Para onde querias ir quando as tuas forças se esgotassem? Ou… será que foste para o teu porto seguro que escondeste de todos, quando as tuas forças se esgotaram e escondeste isso de todos? Sim, estou a ser como tu. Sinto-me neste momento mais como tu do que como eu próprio. Revoltado porque era cedo, revoltado porque não tinhas dado tudo quanto tinhas para dar. Eu sei que deste de ti tudo quanto tinhas para dar, sempre…não haveria mais, já? Será que estou a ser tão como tu que acredito que tinhas que ser inesgotável? Que foi injusto para mim teres saído do teu sonho, o teu casulo, afinal, tal como a minha concha, para fazeres 70kms, pôr um envelope no correio…e na volta, teres-te distraído de tal forma que tivesses deixado a noite derramar o seu manto sobre ti e te apagasse? Será que, como única consolação me resta acreditar ter sido um pouco do nosso amor mal escondido que te tenha feito pensar em mim nos últimos segundos que antecederam o anoitecer?
ENTRE LINHAS...
“Mateus…não sei como te dizer…mas o que começou como uma brincadeira, neste momento é doloroso…Ainda pensei não te dizer nada mas não acho que deva escondê-lo…” Diogo, afundado no sofá como se não quisesse ser visto, estende um envelope” chegou esta manhã. Sei que ela queria muito que o recebesses…desculpa, não posso deixar de te entregar isto que “ela” te mandou”. Diogo estava descontrolado, tímido, inseguro…
Estás a falar de quê, Diogo? Quem é que te…Não!”
“Sim, foi ela. Houve um atraso no correio. Entendes porque não sabia se devia ou não dizer-te?”
Mateus estendeu a mão, pegou o envelope e Diogo saiu como se fugisse. Afinal, como é que a vida o podia encurralar a ele, Diogo, Diogo azul e branco, e para além disso apenas amarelo, numa situação daquelas? Numa situação que envolvia os seus dois únicos amigos incompreensíveis e “não encaixáveis” na sua própria forma de viver, de ver a vida?
Mateus ainda tinha o envelope na mão, fechado, quando ouviu e viu pela janela, o carro desportivo do amigo arrancar como se fugisse de um fantasma. Sentou-se no cadeirão e acariciou o envelope. Sabia que fosse o que fosse, não seria fácil, e os seus olhos ficaram brilhantes, e húmidos, porque a saudade era recente, não tivera ainda tempo de aprender a conviver com ela, mas era já tão profunda que aquilo que tinha nas mãos e ainda não abrira, parecia vindo do mais profundo e longínquo lago que jamais visitara…
Estás a falar de quê, Diogo? Quem é que te…Não!”
“Sim, foi ela. Houve um atraso no correio. Entendes porque não sabia se devia ou não dizer-te?”
Mateus estendeu a mão, pegou o envelope e Diogo saiu como se fugisse. Afinal, como é que a vida o podia encurralar a ele, Diogo, Diogo azul e branco, e para além disso apenas amarelo, numa situação daquelas? Numa situação que envolvia os seus dois únicos amigos incompreensíveis e “não encaixáveis” na sua própria forma de viver, de ver a vida?
Mateus ainda tinha o envelope na mão, fechado, quando ouviu e viu pela janela, o carro desportivo do amigo arrancar como se fugisse de um fantasma. Sentou-se no cadeirão e acariciou o envelope. Sabia que fosse o que fosse, não seria fácil, e os seus olhos ficaram brilhantes, e húmidos, porque a saudade era recente, não tivera ainda tempo de aprender a conviver com ela, mas era já tão profunda que aquilo que tinha nas mãos e ainda não abrira, parecia vindo do mais profundo e longínquo lago que jamais visitara…
10.4.07
ANTES QUE ANOITEÇA...
Decidi fazer uma surpresa a um amigo, com a ajuda de outro amigo. Acontece que o Mateus, o tal amigo que quero surpreender, está numa espécie de licença profissional com o intuito de escrever um livro. Como grandes amigos que somos, eu fui a primeira pessoa a saber um pouco sobre o que ele pretendia fazer. Acompanhei-o em todas as etapas da sua turbulência interior que acabaram por lhe despertar essa necessidade. Bom, na realidade, acompanhei-o nos momentos possíveis, que na sua maior parte foram constituídos por longos passeios à beira mar, em silêncio. Recordo que, por vezes, o meu olhar se cruzava com o seu, e percebia nele um turbilhão negro que deixava transparecer, paradoxalmente, clarões assustadoramente incandescentes. Acompanhei-o, partilhando alguns desses silêncios cheios de significado, mas sobre o trabalho interior que ele teve necessidade de exprimir através da escrita, apenas soube que o seu desejo era dar expressão a algumas reflexões pessoais e falar da vida… da vida como ele via através da sua vivência interior, e da vida que ele percebia através do olhar das pessoas que ia encontrando ao longo da sua vida…
Um dia destes, o Diogo, um amigo comum, disse-me com um olhar malicioso que ia dispensar o Mateus de fazer qualquer referência à vida vista através dos seus olhos, pois ia, ele próprio, falar da vida tal como ele, Diogo, a sentia…
A malícia advinha do facto de saber que todos os que o conhecemos parece vê-lo como um garotão, de sorriso deslumbrante, um bom amigo, mas leve e alegre, quase sempre acima dos problemas existenciais que assolam a maioria de nós, os seus amigos que às vezes são cinzentos, outras brancos, e outras ainda, amarelo - alaranjado…
Penso que o Diogo nos vai surpreender. Esperamos um capítulo azul - turquesa que é a cor do mar que ele adora e em nada se parece com o mar de que, por exemplo, eu e o Mateus tanto gostamos…Neste momento, apercebo-me de que falo do Mateus como se de mim própria se tratasse, e no entanto, se em muitos momentos isso pode ser verdade, outros há em que eu e o Mateus pouco temos em comum para além de uma grande, inexcedível ternura e cumplicidade…Isso tem muito que ver com o facto de termos, como todos, diferentes maneiras de viver a vida que valorizamos de igual maneira, e tendo ele, tal como eu, essa consciência, temo nem agora conseguir surpreendê-lo, verdadeiramente…
Vou começar pelo princípio. Sempre senti, de alguma forma, que o Mateus me via como alguém arredio, uma espécie de gato vadio que canta à lua em noites sem lua, que rema contra a maré. E tudo isso é apenas uma parte da verdade. Eu e o Mateus, ao longo do tempo fomo-nos identificando pelos valores que nos eram mais caros, fomos aprendendo a conhecer-nos de tal forma que as palavras podiam ser substituídas por um simples olhar, em muitas situações. Para além disso, unia-nos uma imensa cumplicidade de vida que conseguia ultrapassar uma diferença formal que podia ser vista como os próprios pólos de um continuum… Enquanto o Mateus, na sua inextinguível vontade de compreender e harmonizar, às vezes tolera o que para mim é intolerável, eu ao contrário, não perco uma oportunidade de “guerrear” pelo que acredito… Eu sei que para ele, sou excessiva. Jamais afivelei a máscara de quem concorda, quando não concordo. O Mateus, por seu lado, deixa passar os momentos inadequados e espera por momentos mais adequados, e por isso, mais frutíferos…
O Mateus não me pediu para participar no seu trabalho, e não, não acredito que a verdadeira razão tenha sido o facto de eu estar de partida para um sonho…conhecemo-nos demasiado para que seja possível acreditar nisso, ou ele acreditar que eu o penso, e quando num dos seus telefonemas me disse” se tiveres um bocadinho escreve alguma coisa para mim”, eu percebi o seu receio de que eu fosse tão agreste como sempre e não houvesse, no seu trabalho, espaço para mim, pelo risco de quebra de harmonia de um trabalho que todos os que o conhecem sabem ser importantíssimo para ele. Assim, pela primeira vez, decidi não aprofundar a questão, limitando a desculpar-me com o volume de trabalho que tinha, mas que apesar de verdadeiro, jamais limitaria a minha vontade de fazer qualquer outra coisa, muito menos se essa outra coisa fosse uma paixão de sempre. Quando o Diogo me disse que ia participar no trabalho do Mateus, soltou-se do meu espírito uma ideia brincalhona que nunca mais conseguiria prender… pelo contrário, combinei com o Diogo que quando entregasse o seu trabalho, entregaria também o meu, e que o Mateus só teria conhecimento da minha participação no momento em que recebesse o meu contributo. Os dados estavam lançados, e o temor do meu amigo Mateus não evitaria nada. Não, nunca afivelei máscaras, mas na minha relação com o Mateus, após as primeiras tentativas de ser total e cruamente sincera, percebi que ele me conhecia ao ponto de saber até onde eu poderia ir, e evitava-o por sentir essa exposição desnecessária. A rebelde, na realidade foi muitas vezes domada por quem nunca deixou de ser doce… Mas sim, admito que às vezes sou excessiva, talvez até um pouco louca. Não deixo passar situações que me agridam, agrido ao questionar quando não entendo, quando se trata de coisas para mim inultrapassáveis, mas a que a maioria das pessoas fecha os olhos, guarda na gaveta, guarda até outro momento que na maioria das vezes nunca vai acontecer… e tudo em nome da boa convivência, dos bons modos, da civilidade que eu não tenho, a que me recuso baixar pagando por isso todos os dias um pouco…Sim, sei que sou radical. Apesar de partilharmos valores, sou o que ele chama carinhosamente de “guerrilheira” enquanto ele é contido, agradável, e nunca abre fogo nem faz ondas… Pois, Mateus… gosto muito de ti, mas vejo-te como um peixinho num lago tranquilo. Não parado. Nunca parado. Mas nunca agitas as águas, nunca te desesperas, descontrolas, ou perdes…
Ao contrário de ti, que vives numa concha de porta aberta mas de onde nunca sais, eu não tenho concha, não tenho medo, sou curiosa, aguerrida, mas como sabes bem, também sou terna…
Eu sei que pretendes ter no teu trabalho olhares diferentes sobre a vida. Aqui, sem contares, tens o meu olhar azul, e branco, e preto, e cinzento, e amarelo alaranjado…
Sei que o nosso afecto nunca esteve em causa mas sempre tive a percepção nítida de que evitavas os meus excessos… O meu amigo conciliador nunca quis ser desagradável, evitando por isso a minha desagradibilidade. Conhecia-me, respeitava-me, mas evitava os meus labirintos mais profundos para não perturbar a sua própria harmonia; e eu sei, Mateus, que o fazias para que em momento algum houvesse um descontrolo que pudesse sequer questionar a imensa amizade que nos une. Porque tu sabes, tendo para isso bastado ler nos meus olhos como até hoje ninguém foi capaz, que o que acabo de escrever é verdade, é o que penso, sem te amar menos um milímetro. Mas nunca deixaste que o dissesse para não ter que dizer também o que pensavas de mim, para que desabafo nenhum nos beliscasse, apesar do afecto que sentimos um pelo outro. Hoje, Mateus, é um dia especial para mim e tu conheces-me, os dias especiais são-no e pronto, não tem que haver razão nenhuma para sê-lo. Sinto que hoje é o meu dia, que tenho que escrever o que sinto e que é a única verdade que te omiti, mas que conheces mesmo sem nunca a teres ouvido. E hoje mesmo, sabes como são as minhas loucas sensações de urgência, inexplicáveis e alucinantes, vou pôr este trabalho no correio para que o Diogo to possa entregar quando entregar o dele. E sei que quando isso acontecer—mal posso esperar para ler o seu trabalho - vais reconhecer que esta é uma prova do meu infinito carinho por ti…
Vou pegar o jipe e fazer 70 kms para pôr isto no correio porque para mim isso é urgente, amanhã para mim pode não fazer sentido, posso tentar pensar como tu e escrever sobre os pássaros bonitos e a terra vermelha, e os odores que me envolvem em paixão… e continuaria a ser tudo verdade… Até logo, Mateus, agora tenho que ir… antes que anoiteça e a urgência se esvaia… e deixe de fazer sentido o que para mim, hoje, é tão importante…
Um dia destes, o Diogo, um amigo comum, disse-me com um olhar malicioso que ia dispensar o Mateus de fazer qualquer referência à vida vista através dos seus olhos, pois ia, ele próprio, falar da vida tal como ele, Diogo, a sentia…
A malícia advinha do facto de saber que todos os que o conhecemos parece vê-lo como um garotão, de sorriso deslumbrante, um bom amigo, mas leve e alegre, quase sempre acima dos problemas existenciais que assolam a maioria de nós, os seus amigos que às vezes são cinzentos, outras brancos, e outras ainda, amarelo - alaranjado…
Penso que o Diogo nos vai surpreender. Esperamos um capítulo azul - turquesa que é a cor do mar que ele adora e em nada se parece com o mar de que, por exemplo, eu e o Mateus tanto gostamos…Neste momento, apercebo-me de que falo do Mateus como se de mim própria se tratasse, e no entanto, se em muitos momentos isso pode ser verdade, outros há em que eu e o Mateus pouco temos em comum para além de uma grande, inexcedível ternura e cumplicidade…Isso tem muito que ver com o facto de termos, como todos, diferentes maneiras de viver a vida que valorizamos de igual maneira, e tendo ele, tal como eu, essa consciência, temo nem agora conseguir surpreendê-lo, verdadeiramente…
Vou começar pelo princípio. Sempre senti, de alguma forma, que o Mateus me via como alguém arredio, uma espécie de gato vadio que canta à lua em noites sem lua, que rema contra a maré. E tudo isso é apenas uma parte da verdade. Eu e o Mateus, ao longo do tempo fomo-nos identificando pelos valores que nos eram mais caros, fomos aprendendo a conhecer-nos de tal forma que as palavras podiam ser substituídas por um simples olhar, em muitas situações. Para além disso, unia-nos uma imensa cumplicidade de vida que conseguia ultrapassar uma diferença formal que podia ser vista como os próprios pólos de um continuum… Enquanto o Mateus, na sua inextinguível vontade de compreender e harmonizar, às vezes tolera o que para mim é intolerável, eu ao contrário, não perco uma oportunidade de “guerrear” pelo que acredito… Eu sei que para ele, sou excessiva. Jamais afivelei a máscara de quem concorda, quando não concordo. O Mateus, por seu lado, deixa passar os momentos inadequados e espera por momentos mais adequados, e por isso, mais frutíferos…
O Mateus não me pediu para participar no seu trabalho, e não, não acredito que a verdadeira razão tenha sido o facto de eu estar de partida para um sonho…conhecemo-nos demasiado para que seja possível acreditar nisso, ou ele acreditar que eu o penso, e quando num dos seus telefonemas me disse” se tiveres um bocadinho escreve alguma coisa para mim”, eu percebi o seu receio de que eu fosse tão agreste como sempre e não houvesse, no seu trabalho, espaço para mim, pelo risco de quebra de harmonia de um trabalho que todos os que o conhecem sabem ser importantíssimo para ele. Assim, pela primeira vez, decidi não aprofundar a questão, limitando a desculpar-me com o volume de trabalho que tinha, mas que apesar de verdadeiro, jamais limitaria a minha vontade de fazer qualquer outra coisa, muito menos se essa outra coisa fosse uma paixão de sempre. Quando o Diogo me disse que ia participar no trabalho do Mateus, soltou-se do meu espírito uma ideia brincalhona que nunca mais conseguiria prender… pelo contrário, combinei com o Diogo que quando entregasse o seu trabalho, entregaria também o meu, e que o Mateus só teria conhecimento da minha participação no momento em que recebesse o meu contributo. Os dados estavam lançados, e o temor do meu amigo Mateus não evitaria nada. Não, nunca afivelei máscaras, mas na minha relação com o Mateus, após as primeiras tentativas de ser total e cruamente sincera, percebi que ele me conhecia ao ponto de saber até onde eu poderia ir, e evitava-o por sentir essa exposição desnecessária. A rebelde, na realidade foi muitas vezes domada por quem nunca deixou de ser doce… Mas sim, admito que às vezes sou excessiva, talvez até um pouco louca. Não deixo passar situações que me agridam, agrido ao questionar quando não entendo, quando se trata de coisas para mim inultrapassáveis, mas a que a maioria das pessoas fecha os olhos, guarda na gaveta, guarda até outro momento que na maioria das vezes nunca vai acontecer… e tudo em nome da boa convivência, dos bons modos, da civilidade que eu não tenho, a que me recuso baixar pagando por isso todos os dias um pouco…Sim, sei que sou radical. Apesar de partilharmos valores, sou o que ele chama carinhosamente de “guerrilheira” enquanto ele é contido, agradável, e nunca abre fogo nem faz ondas… Pois, Mateus… gosto muito de ti, mas vejo-te como um peixinho num lago tranquilo. Não parado. Nunca parado. Mas nunca agitas as águas, nunca te desesperas, descontrolas, ou perdes…
Ao contrário de ti, que vives numa concha de porta aberta mas de onde nunca sais, eu não tenho concha, não tenho medo, sou curiosa, aguerrida, mas como sabes bem, também sou terna…
Eu sei que pretendes ter no teu trabalho olhares diferentes sobre a vida. Aqui, sem contares, tens o meu olhar azul, e branco, e preto, e cinzento, e amarelo alaranjado…
Sei que o nosso afecto nunca esteve em causa mas sempre tive a percepção nítida de que evitavas os meus excessos… O meu amigo conciliador nunca quis ser desagradável, evitando por isso a minha desagradibilidade. Conhecia-me, respeitava-me, mas evitava os meus labirintos mais profundos para não perturbar a sua própria harmonia; e eu sei, Mateus, que o fazias para que em momento algum houvesse um descontrolo que pudesse sequer questionar a imensa amizade que nos une. Porque tu sabes, tendo para isso bastado ler nos meus olhos como até hoje ninguém foi capaz, que o que acabo de escrever é verdade, é o que penso, sem te amar menos um milímetro. Mas nunca deixaste que o dissesse para não ter que dizer também o que pensavas de mim, para que desabafo nenhum nos beliscasse, apesar do afecto que sentimos um pelo outro. Hoje, Mateus, é um dia especial para mim e tu conheces-me, os dias especiais são-no e pronto, não tem que haver razão nenhuma para sê-lo. Sinto que hoje é o meu dia, que tenho que escrever o que sinto e que é a única verdade que te omiti, mas que conheces mesmo sem nunca a teres ouvido. E hoje mesmo, sabes como são as minhas loucas sensações de urgência, inexplicáveis e alucinantes, vou pôr este trabalho no correio para que o Diogo to possa entregar quando entregar o dele. E sei que quando isso acontecer—mal posso esperar para ler o seu trabalho - vais reconhecer que esta é uma prova do meu infinito carinho por ti…
Vou pegar o jipe e fazer 70 kms para pôr isto no correio porque para mim isso é urgente, amanhã para mim pode não fazer sentido, posso tentar pensar como tu e escrever sobre os pássaros bonitos e a terra vermelha, e os odores que me envolvem em paixão… e continuaria a ser tudo verdade… Até logo, Mateus, agora tenho que ir… antes que anoiteça e a urgência se esvaia… e deixe de fazer sentido o que para mim, hoje, é tão importante…
QUASE BELA
Este é um daqueles momentos da vida em que se torna inevitável falar sobre alguém ou alguma coisa de que nunca se quis falar antes, mas confesso que apesar da necessidade visceral de o fazer, é difícil falar sobre “ela”. Nunca admiti uma “ela” na minha vida. Nem mesmo “ela”! Ela era demasiado louca, demasiado profunda, demasiado superficial, demasiado revoltada, demasiado tolerante, demasiado…real… não, não me perguntem porquê mas esta foi sempre a forma como a vi, rude e doce, romântica e sarcástica, feminina e masculina, louca e racional, presente… e perdida…
Não, nunca poderia ter falado dela, até hoje. Não teria sabido o que dizer, teria parecido um idiota tropeçando nas palavras, perdendo o fio à meada, tal como está a acontecer agora, tal como ela sempre conseguiu fazer-me…
Ela quase não tinha nome. Ou tinha tantos que era quase impossível identificá-la, apesar de todos fazerem realmente parte dela. Ela tinha um nome, usava outro, tinha preferido ter um que não tinha; ao longo do tempo, quis ser uma pessoa que não era, gostou de ser quem era, mas a sua vida não passou de um turbilhão de coisas que queria ser, que sentia, que não queria e vivia, de sonhos que construía e vivia no seu espírito e não conseguiu, até determinado momento, concretizar. Dizia-se livre, mas mais do que livre, era semelhante a um velho gato de telhado, vadio, que teimava em miar à lua, sabendo que ela não o ouvia…”Ela” invadiu de terrores as minhas noites, engrandeceu alguns dos meus dias, fez-me pensar, fez-me amá-la, sem querer, mas sempre fui suficientemente racional para a amar, de alguma forma, mas nunca a querer, pois ela era a própria tormenta com que nunca saberia lidar. Ela era alegria da mais esfusiante, e era a negritude mais profunda. É verdade que era honesta. Foi muitas vezes franca até à crueldade para aqueles que mais amava, outras, complacente até à estupidez mais profunda. Ela era tudo, um turbilhão de emoções positivas e negativas, era toda dar, era toda receber, e a verdade é que ninguém estava preparado para ela…
Um dia quis dar voz a um dos sonhos que ao logo da vida tentou preservar e partiu de uma forma igual a ela própria: rápida, intensa e sem viagem de volta marcada. Atrás de si deixou pessoas que acharam óptimo o sossego, que lhe sentiram a falta, que a detestavam e que a amavam. Profunda e incondicionalmente,,,
Hoje está ali, A 100 metros, E não quero vê-la. Estão lá, também, as 9, 10 ou 11 pessoas que a conheceram pelos diversos nomes que teve e que, cada uma à sua maneira a amaram. Eu…eu não quero estar longe, mas também não quero estar demasiado perto. Não quero assumir que está perto porque não quero assumir que para quem tinha tudo dentro de si nada mais é possível,,,
Nunca a tive, mas conheci-a, e isso era o máximo que alguém poderia alcançar. Parece estranho? No entanto, podia-se amá-la, ser-se amado por ela mas nunca se poderia tê-la, e talvez até quem a amasse não a quisesse, pela impossibilidade natural desse facto…
Está ali. Não, não quero vê-la. Não me importa que estejam com violas e cantem, e riam, como ela teria gostado se pudesse ver, se os olhos estão marejados de lágrimas tal como os meus, que me recuso a vê-la. Para mim, neste momento, está apenas tão longe como o esteve a 2 centímetros da minha pele, e sei que nunca esteve muito mais próxima do que isso, tal como sei que amou estas 12 pessoas, mais todas as outras que se cruzaram com ela na rua, e no entanto, soube sempre que há momentos que são solitários…como este seu momento. Como este meu momento. Vou-me embora. Enquanto todos cantam como ela gostaria, e deixam rolar as lágrimas que ela não pode ver. Vou-me embora. E durante o caminho para casa, onde me encontrarei com ela longe desta gente, já terei a sua companhia, já estará comigo nas nossas horas secretas, cheias do meu amor e às vezes da minha incompreensão, do seu amor, da sua revolta, da sua decepção, da sua solidão…da sua vida e da sua morte…
Não, nunca poderia ter falado dela, até hoje. Não teria sabido o que dizer, teria parecido um idiota tropeçando nas palavras, perdendo o fio à meada, tal como está a acontecer agora, tal como ela sempre conseguiu fazer-me…
Ela quase não tinha nome. Ou tinha tantos que era quase impossível identificá-la, apesar de todos fazerem realmente parte dela. Ela tinha um nome, usava outro, tinha preferido ter um que não tinha; ao longo do tempo, quis ser uma pessoa que não era, gostou de ser quem era, mas a sua vida não passou de um turbilhão de coisas que queria ser, que sentia, que não queria e vivia, de sonhos que construía e vivia no seu espírito e não conseguiu, até determinado momento, concretizar. Dizia-se livre, mas mais do que livre, era semelhante a um velho gato de telhado, vadio, que teimava em miar à lua, sabendo que ela não o ouvia…”Ela” invadiu de terrores as minhas noites, engrandeceu alguns dos meus dias, fez-me pensar, fez-me amá-la, sem querer, mas sempre fui suficientemente racional para a amar, de alguma forma, mas nunca a querer, pois ela era a própria tormenta com que nunca saberia lidar. Ela era alegria da mais esfusiante, e era a negritude mais profunda. É verdade que era honesta. Foi muitas vezes franca até à crueldade para aqueles que mais amava, outras, complacente até à estupidez mais profunda. Ela era tudo, um turbilhão de emoções positivas e negativas, era toda dar, era toda receber, e a verdade é que ninguém estava preparado para ela…
Um dia quis dar voz a um dos sonhos que ao logo da vida tentou preservar e partiu de uma forma igual a ela própria: rápida, intensa e sem viagem de volta marcada. Atrás de si deixou pessoas que acharam óptimo o sossego, que lhe sentiram a falta, que a detestavam e que a amavam. Profunda e incondicionalmente,,,
Hoje está ali, A 100 metros, E não quero vê-la. Estão lá, também, as 9, 10 ou 11 pessoas que a conheceram pelos diversos nomes que teve e que, cada uma à sua maneira a amaram. Eu…eu não quero estar longe, mas também não quero estar demasiado perto. Não quero assumir que está perto porque não quero assumir que para quem tinha tudo dentro de si nada mais é possível,,,
Nunca a tive, mas conheci-a, e isso era o máximo que alguém poderia alcançar. Parece estranho? No entanto, podia-se amá-la, ser-se amado por ela mas nunca se poderia tê-la, e talvez até quem a amasse não a quisesse, pela impossibilidade natural desse facto…
Está ali. Não, não quero vê-la. Não me importa que estejam com violas e cantem, e riam, como ela teria gostado se pudesse ver, se os olhos estão marejados de lágrimas tal como os meus, que me recuso a vê-la. Para mim, neste momento, está apenas tão longe como o esteve a 2 centímetros da minha pele, e sei que nunca esteve muito mais próxima do que isso, tal como sei que amou estas 12 pessoas, mais todas as outras que se cruzaram com ela na rua, e no entanto, soube sempre que há momentos que são solitários…como este seu momento. Como este meu momento. Vou-me embora. Enquanto todos cantam como ela gostaria, e deixam rolar as lágrimas que ela não pode ver. Vou-me embora. E durante o caminho para casa, onde me encontrarei com ela longe desta gente, já terei a sua companhia, já estará comigo nas nossas horas secretas, cheias do meu amor e às vezes da minha incompreensão, do seu amor, da sua revolta, da sua decepção, da sua solidão…da sua vida e da sua morte…
7.2.07
TODOS OS MOMENTOS...
Cada vez mais acredito em momentos “não históricos”, em momentos disfarçados de neblina, em que tudo se constrói, como uma teia urdida em silêncio, que de repente se torna visível, vaporosa, perfeita…
É verdade, há sempre aqueles dias que são inesquecíveis, os tais dias históricos! Como o dia do nascimento do nosso primeiro filho (terá sido um milagre da madrugada para a manhã?), a primeira palavra (inventada na horinha?), o primeiro dia de escola, a primeira crise, a solene convicção de um dia tão importante como aquele em que o tal, o primeiro, faz dezoito anos, e de lágrimas nos olhos, embevecidos e receosos, orgulhosamente emocionados, soltamos um ”és um homem!”. Um homem acabadinho de fazer, a fazer justiça aos momentos históricos de que a nossa vida é povoada…
Não, eu acredito que somos os duendes que, laboriosamente, atrás dos nossos momentos históricos, pela calada da vida a que não damos importância, vão tecendo a trama que no momento certo se torna visível, num piscar de olhos que despoleta a luz, que a traz à tona… mas, laboriosamente e mais uma vez, já os duendes estão de novo nas catacumbas de si próprios, amassando, às vezes disparando em todas as direcções, construindo o próximo momento histórico, alheios ao som das palmas do último, que para eles já passou, que foi, de todos, o mais estéril… o ser que lhes dá o rosto recebê-las-á e esperará, sem sobressaltos, o próximo momento que, sem saber, já está a construir com o que não sabe que tem, dentro de si…
Momentos … como aquele momento em que, de repente, sem saberes como, percebes que algo ensombra a tua vida feliz… estás sentada na cama, as mãos abraçando as pernas, o rosto descaindo sobre o corpo… e percebes… percebes finalmente o que tantos momentos felizes te esconderam: o demasiado bom, em que custaste a acreditar é afinal… demasiado pouco… (malditos duendes!). Relembras a amálgama de sentimentos que se apossou de ti durante um período de tempo que te parecia já ser toda a vida. Relembras o fascínio (e sim, tens consciência que relembrar continua a ser sentir, mas já de uma outra forma, mais distante, menos apaixonada) que sentiste pela enorme proximidade que existia entre os dois, as pequenas diferenças tão aceites, tão…tão boas de sentir diferenças face ao que possuíam em comum…Agora, sentes que o problema não está, como é tantas vezes referido, em olhar ou não na mesma direcção, ou em olharem lado a lado em direcções diferentes… o problema está na esterilidade do vosso amor, na maravilhosa magia de partilharem o que têm para partilhar e na completa incapacidade de construir seja o que for, juntos. Também aqui perpassa um velho cliché que apenas o é pela constatação da probabilidade com que acontece e que sem poder ser encarado – como tudo, afinal - como uma verdade absoluta, nos relembra que muitas vezes, o amor é estéril e pode consumir quem o sente na própria chama se não lhe proporcionarmos o oxigénio suficiente para se renovar, para o transformar , todos os dias, enquanto relação, num regresso a casa, a uma paz ou ardor que nos faz falta, e que para isso também é importante ter um espaço pessoal que impeça a obsessão e, mais tarde, a inevitável asfixia... Partilhar gargalhadas e dores não basta, lamber feridas não basta, pode ajudar a não afundar nesse momento, mas não ajuda a construir algo. Faltará sempre alguma coisa, faltará uma parte de um, faltará uma parte de outro, e essa falta irá asfixiar, destruir a magia, o deslumbramento daqueles momentos que, sentes agora, eram tudo o que tinham... Esses momentos eram tudo… sem terem sido momentos históricos, fizeram a história, a vossa história. O momento histórico mostrou apenas que não havia nada para lá deles. Onde está a história da nossa vida? O que é afinal tão importante que nos faça querer continuar e de que não nos damos conta? Os momentos que não são história e constroem a história ou o momento histórico em que descobres que a história afinal não tem sentido? Não sabes, só sabes que o beijo já não é salgado, o coração continua a bater mas já não entendes porquê, a vontade de mudar de rumo é imperativa… A dor e a criatividade que estiveram ausentes por instantes, os tais não históricos, voltou, e o rio de águas mansas que te afoga diz que não sabes o que fazer, que é duro admiti-lo, mas a vida parece ter apenas sentido no momento de recomeçar, e depois… há a dor… há sempre a dor…
Há quem passe pela vida sem a sentir... Descubra a magia da partilha, esqueça o que não interessa, agite a bandeira, proclame o valor mais alto e… seja feliz! Outros há que não se contentam em ver deslizar os seus sonhos colina abaixo, questionam-se, questionam o amor que os cegou de luz por instantes, querem saber o que fez o curso das águas mudar de direcção, o que embranquece os seus cabelos, o que entristece o seu olhar. E não param aos trinta, aos quarenta, aos cinquenta… não podem parar porque isso seria o desistir de si próprios. Assim, com a mesma força, aos vinte, trinta, quarenta ou cinquenta, como se a vida lhes desse o eterno direito de recomeçar, como se fossem jovens para sempre e tivessem para sempre a vida toda à sua frente, são imparáveis, para não morrer por dentro… E têm, sim, a vida à sua frente! A sua vida, seja dez segundos ou trinta anos; e sim, eu acredito que têm o direito de pagar a factura que a vida lhes cobrar por terem a veleidade de se acharem eternos enquanto respirarem, por escolherem a mudança quando sentem que a magia se extingue, por deixar que os outros acreditem que a qualquer momento podem deixar destroços atrás de si, quando nesses momentos os únicos destroços são eles próprios que, apesar disso, continuam a encontrar dentro de si forças para continuar à procura de um pôr-do-sol qualquer, que está sempre, por mais que caminhem, um pouco mais além de si próprios…Talvez seja um dos “eternos” de que sempre ouvimos falar na verdura dos nossos tenros anos e que, por essa razão nunca entendemos…
Parece-me a velha questão do ser e do existir, do eterno que afinal a todo o momento termina e recomeça, ou simplesmente se renova, remetendo-nos para outras (questões igualmente velhas, mas jamais esquecidas) que nos confortam em horas que são estupidamente turbulentas e inevitavelmente solitárias, como o direito que temos de, querendo ou não ser correctos, bons, límpidos e maravilhosos, podermos ser também um pouco egoístas, de nos amarmos, de não querer acabar antes de começar, de não rejeitar o que ficou para trás, mas sentir que temos o direito de seguir em frente, de nos desfazermos em pedaços e de nos reconstruirmos, com mais isto e aquilo, com menos isto e aquilo, mas nos recusarmos a morrer até o coração parar…Sim, a mim parece-me o velho lugar comum do “eterno enquanto dura” mas que, apesar de tudo me parece fazer mais sentido do que “aqui estou eu, inteira e quem sabe…talvez prisioneira?” Talvez, afinal, esta seja a eternidade possível, e para os tais guerrilheiros de vidro que nunca se rendem e são muitas vezes os primeiros a partir, a única verdadeira, por, afinal, ter ressaltos, fins e recomeços, ser eterna procura…
“Amei-te… e amar-te-ei sempre, mas tenho que continuar… ”Não, não se diz, mas pode sentir-se, e pode ser mais penoso partir do que ficar, porque o direito a continuar não atenua sentimentos de culpa, só que “desculpa, amor, mas dor alguma me pode impedir de continuar, não pode fazer-me desistir… de mim… e contudo, é eterno o meu amor por ti! Assumo-o, solenemente, neste momento histórico que não existe, é apenas o culminar dos momentos sem história em que os meus duendes trabalharam afincadamente enquanto eu… te amava, simplesmente…”
É verdade, há sempre aqueles dias que são inesquecíveis, os tais dias históricos! Como o dia do nascimento do nosso primeiro filho (terá sido um milagre da madrugada para a manhã?), a primeira palavra (inventada na horinha?), o primeiro dia de escola, a primeira crise, a solene convicção de um dia tão importante como aquele em que o tal, o primeiro, faz dezoito anos, e de lágrimas nos olhos, embevecidos e receosos, orgulhosamente emocionados, soltamos um ”és um homem!”. Um homem acabadinho de fazer, a fazer justiça aos momentos históricos de que a nossa vida é povoada…
Não, eu acredito que somos os duendes que, laboriosamente, atrás dos nossos momentos históricos, pela calada da vida a que não damos importância, vão tecendo a trama que no momento certo se torna visível, num piscar de olhos que despoleta a luz, que a traz à tona… mas, laboriosamente e mais uma vez, já os duendes estão de novo nas catacumbas de si próprios, amassando, às vezes disparando em todas as direcções, construindo o próximo momento histórico, alheios ao som das palmas do último, que para eles já passou, que foi, de todos, o mais estéril… o ser que lhes dá o rosto recebê-las-á e esperará, sem sobressaltos, o próximo momento que, sem saber, já está a construir com o que não sabe que tem, dentro de si…
Momentos … como aquele momento em que, de repente, sem saberes como, percebes que algo ensombra a tua vida feliz… estás sentada na cama, as mãos abraçando as pernas, o rosto descaindo sobre o corpo… e percebes… percebes finalmente o que tantos momentos felizes te esconderam: o demasiado bom, em que custaste a acreditar é afinal… demasiado pouco… (malditos duendes!). Relembras a amálgama de sentimentos que se apossou de ti durante um período de tempo que te parecia já ser toda a vida. Relembras o fascínio (e sim, tens consciência que relembrar continua a ser sentir, mas já de uma outra forma, mais distante, menos apaixonada) que sentiste pela enorme proximidade que existia entre os dois, as pequenas diferenças tão aceites, tão…tão boas de sentir diferenças face ao que possuíam em comum…Agora, sentes que o problema não está, como é tantas vezes referido, em olhar ou não na mesma direcção, ou em olharem lado a lado em direcções diferentes… o problema está na esterilidade do vosso amor, na maravilhosa magia de partilharem o que têm para partilhar e na completa incapacidade de construir seja o que for, juntos. Também aqui perpassa um velho cliché que apenas o é pela constatação da probabilidade com que acontece e que sem poder ser encarado – como tudo, afinal - como uma verdade absoluta, nos relembra que muitas vezes, o amor é estéril e pode consumir quem o sente na própria chama se não lhe proporcionarmos o oxigénio suficiente para se renovar, para o transformar , todos os dias, enquanto relação, num regresso a casa, a uma paz ou ardor que nos faz falta, e que para isso também é importante ter um espaço pessoal que impeça a obsessão e, mais tarde, a inevitável asfixia... Partilhar gargalhadas e dores não basta, lamber feridas não basta, pode ajudar a não afundar nesse momento, mas não ajuda a construir algo. Faltará sempre alguma coisa, faltará uma parte de um, faltará uma parte de outro, e essa falta irá asfixiar, destruir a magia, o deslumbramento daqueles momentos que, sentes agora, eram tudo o que tinham... Esses momentos eram tudo… sem terem sido momentos históricos, fizeram a história, a vossa história. O momento histórico mostrou apenas que não havia nada para lá deles. Onde está a história da nossa vida? O que é afinal tão importante que nos faça querer continuar e de que não nos damos conta? Os momentos que não são história e constroem a história ou o momento histórico em que descobres que a história afinal não tem sentido? Não sabes, só sabes que o beijo já não é salgado, o coração continua a bater mas já não entendes porquê, a vontade de mudar de rumo é imperativa… A dor e a criatividade que estiveram ausentes por instantes, os tais não históricos, voltou, e o rio de águas mansas que te afoga diz que não sabes o que fazer, que é duro admiti-lo, mas a vida parece ter apenas sentido no momento de recomeçar, e depois… há a dor… há sempre a dor…
Há quem passe pela vida sem a sentir... Descubra a magia da partilha, esqueça o que não interessa, agite a bandeira, proclame o valor mais alto e… seja feliz! Outros há que não se contentam em ver deslizar os seus sonhos colina abaixo, questionam-se, questionam o amor que os cegou de luz por instantes, querem saber o que fez o curso das águas mudar de direcção, o que embranquece os seus cabelos, o que entristece o seu olhar. E não param aos trinta, aos quarenta, aos cinquenta… não podem parar porque isso seria o desistir de si próprios. Assim, com a mesma força, aos vinte, trinta, quarenta ou cinquenta, como se a vida lhes desse o eterno direito de recomeçar, como se fossem jovens para sempre e tivessem para sempre a vida toda à sua frente, são imparáveis, para não morrer por dentro… E têm, sim, a vida à sua frente! A sua vida, seja dez segundos ou trinta anos; e sim, eu acredito que têm o direito de pagar a factura que a vida lhes cobrar por terem a veleidade de se acharem eternos enquanto respirarem, por escolherem a mudança quando sentem que a magia se extingue, por deixar que os outros acreditem que a qualquer momento podem deixar destroços atrás de si, quando nesses momentos os únicos destroços são eles próprios que, apesar disso, continuam a encontrar dentro de si forças para continuar à procura de um pôr-do-sol qualquer, que está sempre, por mais que caminhem, um pouco mais além de si próprios…Talvez seja um dos “eternos” de que sempre ouvimos falar na verdura dos nossos tenros anos e que, por essa razão nunca entendemos…
Parece-me a velha questão do ser e do existir, do eterno que afinal a todo o momento termina e recomeça, ou simplesmente se renova, remetendo-nos para outras (questões igualmente velhas, mas jamais esquecidas) que nos confortam em horas que são estupidamente turbulentas e inevitavelmente solitárias, como o direito que temos de, querendo ou não ser correctos, bons, límpidos e maravilhosos, podermos ser também um pouco egoístas, de nos amarmos, de não querer acabar antes de começar, de não rejeitar o que ficou para trás, mas sentir que temos o direito de seguir em frente, de nos desfazermos em pedaços e de nos reconstruirmos, com mais isto e aquilo, com menos isto e aquilo, mas nos recusarmos a morrer até o coração parar…Sim, a mim parece-me o velho lugar comum do “eterno enquanto dura” mas que, apesar de tudo me parece fazer mais sentido do que “aqui estou eu, inteira e quem sabe…talvez prisioneira?” Talvez, afinal, esta seja a eternidade possível, e para os tais guerrilheiros de vidro que nunca se rendem e são muitas vezes os primeiros a partir, a única verdadeira, por, afinal, ter ressaltos, fins e recomeços, ser eterna procura…
“Amei-te… e amar-te-ei sempre, mas tenho que continuar… ”Não, não se diz, mas pode sentir-se, e pode ser mais penoso partir do que ficar, porque o direito a continuar não atenua sentimentos de culpa, só que “desculpa, amor, mas dor alguma me pode impedir de continuar, não pode fazer-me desistir… de mim… e contudo, é eterno o meu amor por ti! Assumo-o, solenemente, neste momento histórico que não existe, é apenas o culminar dos momentos sem história em que os meus duendes trabalharam afincadamente enquanto eu… te amava, simplesmente…”
30.11.06
ENTRE PONTOS
Mais uma vez, a vida, através de um amigo, que a arrogância, ainda que indelével, representa um dos pontos mais frágeis de cada um de nós, o que pode não ser visto e, contudo, pode estar na origem da derrocada da construção mais elaborada…Ainda que sem consciência, talvez eu realmente tivesse, para além da amizade que me une ao Diogo, julgado estar um passinho à sua frente em algumas situações da vida…Enganei-me, e foi o “Amigo” que me ajudou a ter consciência desse erro, permitindo, dessa forma, que me conhecesse um pouco mais, que me apercebesse de partes sombrias que desconhecera até aí…É difícil ver as nossas próprias costas enquanto caminhamos pela vida, daí a importância que cada vez mais reconheço aos amigos, e que nos ajuda a descobrir sobre nós o que, sozinhos, talvez não viéssemos nunca a descobrir…Sim, o Diogo, neste caso, foi o espelho que reflectiu algo que era um pouco sombrio em mim e de que não tivera consciência até esse momento. Sem julgamentos, apenas questionando, fazendo reflectir. Quanto mais pequenos vemos os outros, neste ou naquele momento, mais grandiosos eles podem surgir instrumentalizando a vida que, a todo o momento tem preparadas lições que são vitais para prosseguirmos o trilho que desejamos traçar, mas de que nunca conhecemos todos os traços…
Decidi tentar ser mais visível no que escrevo; entendo que a verdadeira origem do que escrevo deve ter viva voz, sem limites deste ou aquele assunto que me interesse retratar. E se a vida, na minha perspectiva, é uma construção minha, também me parece cada vez mais verdade ser inegável a influência dos que me são próximos sobre mim e essa construção. Assim, sempre que isso for possível, não vou escrever sobre quem pode fazê-lo, na primeira pessoa, e também não vou pedir-lhes que escrevam sobre isto ou aquilo; pelo contrário, vou pedir apenas que escrevam o que quiserem sobre o que quiserem, desde que isso os retrate, de alguma forma, seja através de um momento particular ou uma reflexão, de uma história ou de uma não história…Vou tentar que, juntos, possamos construir algo que mostre a vida tal como cada um de nós a vê, nos momentos representados com a convicção de que será sempre algo que se fosse o resultado da minha tentativa de ver a vida pelos “seus” olhos…
Assim, o alinhamento do trabalho que tinha em mente, ficou deslocado, mas decidi não fazer correcções de forma a escondê-lo, prefiro dar à alteração dessa estrutura, o valor que representa a descoberta de um erro e a tentativa da sua correcção…Vou tentar corrigir o erro, sem o esconder, para que, em consciência, possa dar o devido valor a quem contribuiu para alargar um pouco mais o meu olhar…
Decidi tentar ser mais visível no que escrevo; entendo que a verdadeira origem do que escrevo deve ter viva voz, sem limites deste ou aquele assunto que me interesse retratar. E se a vida, na minha perspectiva, é uma construção minha, também me parece cada vez mais verdade ser inegável a influência dos que me são próximos sobre mim e essa construção. Assim, sempre que isso for possível, não vou escrever sobre quem pode fazê-lo, na primeira pessoa, e também não vou pedir-lhes que escrevam sobre isto ou aquilo; pelo contrário, vou pedir apenas que escrevam o que quiserem sobre o que quiserem, desde que isso os retrate, de alguma forma, seja através de um momento particular ou uma reflexão, de uma história ou de uma não história…Vou tentar que, juntos, possamos construir algo que mostre a vida tal como cada um de nós a vê, nos momentos representados com a convicção de que será sempre algo que se fosse o resultado da minha tentativa de ver a vida pelos “seus” olhos…
Assim, o alinhamento do trabalho que tinha em mente, ficou deslocado, mas decidi não fazer correcções de forma a escondê-lo, prefiro dar à alteração dessa estrutura, o valor que representa a descoberta de um erro e a tentativa da sua correcção…Vou tentar corrigir o erro, sem o esconder, para que, em consciência, possa dar o devido valor a quem contribuiu para alargar um pouco mais o meu olhar…
29.11.06
O MEU AMIGO DIOGO
Abre a porta de casa do seu amigo Mateus, chama: Mateus!
A casa está em silêncio, a amizade é de longa data, a entrada é franca. O escritório, local onde o amigo passa a maior parte do seu tempo, é o primeiro local para onde se dirige. Mateus não se encontra lá; no computador, Diogo apercebe-se de um trabalho em curso: “ah, o novo trabalho do Mateus!” A esta altura, a curiosidade era já muito patente no olhar acutilante de Diogo que se deteve apenas um segundo, antes de considerar que a amizade era grande o suficiente para permitir a invasão…
Senta-se em frente ao écran e começa a ler. Alguns minutos depois, com o olhar apreensivo, pára, recosta-se na cadeira, os olhos muito azuis parecem escurecer…De repente levanta-se, dirige-se às escadas e acede à varanda, no 1º andar; o amigo está ali, sentado, à frente de um whisky, o olhar poisado na paisagem como se estivesse olhando através dela…
-“Mateus!”
-“Diogo! Desculpa” – a expressão de Mateus era quase assustada, parecia ter sido interrompido abruptamente no meio de uma qualquer viagem – “Esqueci-me completamente das horas…vou só pegar o blusão e podemos ir.”
-“Espera um pouco Mateus…” – o seu olhar, o olhar do seu amigo Diogo estava mais sério do que era hábito, sentou-se à sua frente e parecia… um pouco mais o Diogo que ele, Mateus, adivinhava, do que o que se revelava todos os dias, à vista de todos…o bonitão bem sucedido profissionalmente, que não deixava escapar um fim-de-semana, no seu próprio iate, sempre em companhias deslumbrantes, alegre e deslizante, estava sério…
Na verdade, Mateus já tinha percebido que havia mais Diogo do que ele mostrava através dos óculos de sol, mas embora o fascinasse a possibilidade dessa revelação, não constituía para ele um problema a aparente superficialidade do amigo. Para Mateus, não era importante responder a questões como as que lhe eram recorrentemente colocadas quando se falava de Diogo; um sorriso, perante questões como “não sei como consegues ser amigo daquele tipo”,”não tem nada em comum contigo”, “não passa de um playboy”, era para Mateus a única resposta possível, porque não tinha sentido nunca necessidade de justificar a amizade, fosse por quem fosse, com argumentos de qualquer tipo; para Mateus, a amizade entre as pessoas acontecia num primeiro momento sem razões concretas, antes por puro acaso, empatia que pode ou não consolidar-se… e depois vai-se construindo em constante interacção, alheia a questões que lhe são irrelevantes, até que se transforma mesmo em amizade, aquela, a única digna desse nome, em que se aceita o outro tal como é sem que haja a pretensão de mudar uma vírgula… Claro que, para ele, a amizade também não era a elegia constante um do outro, nem incapacidade de agitar, não era uma relação morta ou um lago de águas paradas; pelo contrário, era uma relação dinâmica em que tudo o que é importante para o crescimento de cada um é discutível, e dessa forma a amizade se renovava a cada passo, a cada silêncio (entre verdadeiros amigos, podem partilhar-se silêncios mais significativos do que certas conversas que se pretendem inteligentes e férteis), mas em que o nível de respeito é o mais alto, independentemente de todas as variáveis individuais existentes… Assim, para Mateus, a aparente leveza do amigo tinha contribuído para reflectir sobre si próprio ou, dizendo de outra forma, tinha contribuído, como é natural, para a sua construção pessoal, para um aprofundamento do seu auto-conhecimento, para uma maior consciência da sua identidade e, consequente e previsivelmente, tinha contribuído também para o aprofundamento da relação de amizade entre os dois…Mais uma forma silenciosa de crescer na relação com os outros e consigo próprio.
Não, para Mateus a alegria de viver não constituía pecado, e também não acreditava na futilidade completa, tal como não acreditava em perfeições ou imperfeições absolutas; apesar de lugar comum, ele acreditava na importância desses conceitos que lhe permitia vislumbrar inúmeras nuances em cada pessoa que encontrava, com a consciência de que, ainda assim, nem de si próprio conseguiria nunca saber tudo o que era importante. Assim, quando o seu amigo Diogo demonstrou mais seriedade do que aquela a que o tinha habituado, Mateus percebeu que algo importante se passava com o amigo, mas não conseguiu vislumbrar a mais pequena ideia do que se tratava. Apesar disso, percebia que esse momento prenunciava um daqueles rasgos de sensibilidade que ele já percebera existirem por detrás da maluqueira, aquelas tristezas escondidas atrás de…coisa nenhuma… E mais uma vez, não é pecado gostar de alguém, seja de quem for, só porque não tem o nosso sorriso compreensivo, as nossas “tretas” profundas e a nossa vida comedida. Não, o pecado não existe, nem no Mateus, nem no Diogo. Mateus admite que o Diogo o fascina e jamais explicará a alguém a razão, porque simplesmente não precisa, para ele a amizade não se explica, vive-se, e Mateus não sente vontade de quebrar o seu palácio de cristal explicando o que já percebeu de profundo atrás de toda aquela leveza… neste caso, a sustentável leveza de um ser mais profundo do que aparenta…
-“Mas não vamos jantar? Ou preferes fazer qualquer coisa aqui?”
-“Não… estava a pensar numa coisa… acabei de fazer algo que tu jamais farias, eu sei…” – sentou-se na cadeira e o playboy não estava lá, era mesmo o Diogo, o Diogo que se escondia afincadamente de todos – “eu li o trabalho que estás a fazer! Quer dizer, fui à tua procura ao escritório, não estavas lá, tive curiosidade, li o que tinhas no computador… não, não estou a justificar o que não tem explicação, tu conheces-me, está errado mas confesso que não resisti…”
Mateus ficou sério por uns segundos… melhor dizendo, o Mateus continuou sério como sempre foi, embora por um ou dois segundos o seu olhar tenha parecido um pouco mais escuro. No entanto, quando voltou a falar, não existia nenhum tipo de zanga nem no olhar nem na voz: “não o faria, mas és meu amigo, não te escondi que pretendia escrever um novo trabalho…embora não, não o fizesse! Mas também – deu uma gargalhadinha, acomodou-se, bebeu um golo de whisky - não me estou a ver a ler à revelia o que tu não escreves!”
A tentativa de Mateus de desdramatizar a atitude do amigo parecia, no entanto, não estar a resultar; Diogo continuava sério, e, pior do que isso, surgiu-lhe no rosto uma certa expressão de mágoa: “ah, então é isso…o Diogo não é páreo para ti…”
Mateus estava agora bastante preocupado; não tivera nunca intenção de desvalorizar o amigo, mas não são as intenções que importam mas as consequências que os nossos actos provocam nos outros…afinal, que importância pode ter a nossa boa intenção quando fazemos qualquer coisa, se isso magoa aqueles a quem a nossa boa intenção se dirige? E enquanto um turbilhão de dúvidas sobre si próprio tomava conta da sua mente, ouve a voz calma: “ eu sei que não tinhas intenção.”
-“Desculpa, nunca me passou pela cabeça…” – o amigo interrompeu-o, desvalorizando ele, agora, a situação.
-“Apercebi-me mais uma vez, de uma característica dos teus trabalhos…bom, não sei se é uma característica, mas tu és bastante cuidadoso em não deixar transparecer a tua formação e experiência profissional no que escreves. Não posso deixar de pensar qual será o motivo…”
Mateus estava um pouco perplexo: “Não existe um verdadeiro cuidado em escondê-lo, embora prefira dissociar esta actividade da actividade profissional, por sentir, desta forma, mais liberdade para criar, e talvez também porque assim posso evitar que as pessoas que lêem os meus trabalhos fiquem condicionadas por essa informação. Mas o que é que te perturba em relação a isto?”
O Diogo estava sério havia mais do que cinco minutos o que era preocupante por si próprio.”Tu não achas um pouco…enfim, desonesto, de um certo ponto de vista, ocultares a tua formação profissional quando ela se reflecte nos teus trabalhos? Será que isso não traduz um problema teu perante a possibilidade de ser avaliado através do que escreves? Ou da avaliação dos teus trabalhos ser mais exigente pelo facto de teres uma determinada formação profissional?”A esta altura Diogo serve-se de um pouco mais de whisky; Mateus está a ouvi-lo e percebe pela sua vivacidade, pelo brilho dos olhos, que não vai ficar por aqui.”Há situações em que essa informação não é relevante, ou não é tão relevante; na tua situação é importante, não te parece? Imagina que és um professor, um advogado, um contabilista…Apesar de todas as nossas experiências serem transportadas para o que fazemos, o teu caso é um daqueles em que essa informação tem importância acrescida mas que, também por isso, acarreta mais riscos face à avaliação a que todos estamos sujeitos, quando expomos o que fazemos à apreciação dos outros. Concretamente em relação aos teus trabalhos, assinados por um profissional de outra área qualquer, por exemplo de qualquer uma das que citei, a avaliação vai incidir muito em aspectos como o conhecimento profundo do ser humano, uma sensibilidade em dose adequada, blá blá blá concordas?”
-“Claro, continua.”À relativa surpresa inicial, esta conversa tinha dado lugar, no espírito de Mateus, a um curto mas intenso passeio pelas suas próprias alamedas, alamedas cuja existência ignorava e que, guiado pelo Diogo, acabava de descobrir, iniciando acto contínuo a sua exploração.
-“Então, no momento em que assumires a tua formação profissional, o teu trabalho vai ser avaliado com um critério de exigência maior do que até agora, concordas? O excelente trabalho que tens feito deixará de ser …tão surpreendente! É isso que te assusta?” – Mateus não pode evitar de entender o ponto de vista do Diogo. No entanto, e não sendo essa a verdadeira razão da sua opção, em termos de forma de apresentação de trabalho, tentou explicá-lo, com a calma que lhe era peculiar: “Compreendo o teu ponto de vista, Diogo, sem dúvida, mas se não forneço informações acerca do autor, é apenas porque, apesar de ser sempre uma construção pessoal, um livro, na minha perspectiva, deve ser avaliado pela sua capacidade ou incapacidade de provocar no eventual leitor, uma reflexão sobre si próprio, mais um ponto de partida para uma nova viagem através de si próprio, mais um momento de exploração da sua própria identidade… Deste ponto de vista, o autor do livro não é protagonista deste processo; o verdadeiro protagonismo divide-se entre o livro e o leitor, um porque adensa no leitor o conhecimento de si próprio, outro porque ultrapassa o próprio livro, através do seu estímulo, mas distanciando-se dele, numa recriação pessoal desse ponto de partida que o aproxima um pouco mais de si próprio …onde está a grande importância de um escritor, para além de ter ou não a capacidade construir um trabalho que desperte cada leitor para si mesmo? Que importância tem para quem lê, saber o que faz o autor do livro se ele não quiser dar-se a conhecer? Se for bem sucedido na sua intenção, será a primeira peça do puzzle a ser ultrapassada, e isso acontece no exacto momento em que o livro mostra alcançar o objectivo do seu criador original, do primeiro, apenas...Eu sinto mais liberdade de espírito escrevendo sem me apresentar, mas acredito que cada trabalho deve ser avaliado pelas tais capacidades que pode ou não ter, independentemente de factores que penso não serem relevantes.
-“ Visto dessa forma talvez tenhas razão. A propósito do teu livro, a única vez que tu falaste sobre a intenção de o escrever - aqui, o olhar era malicioso ao ponto da Mateus estar à espera de qualquer coisa, até da maior maluqueira - , talvez tenha contribuído para aguçar a minha curiosidade, hoje; Tu pretendes partir do facto de que todos somos produtos de nós e da influência exercida pelos outros, que nós por nossa vez também influenciamos, é assim?”
“Sim, como ponto de partida sim…Mas como, no que se refere de uma forma mais consistente, à nossa própria construção, para mim são os Amigos os nossos principais co-autores, tal como nós somos os deles, pelo afecto, respeito e a confiança que propicia a mais desagradável das verdades, de forma que não magoa mas nos faz pensar no que somos e não sabemos, no que ainda não somos e de que nunca sentiríamos a falta, se não fossem os outros, os tais que nos rodeiam e que vêem as nossas sombras, e não se calam; só dessa forma nós podemos tentar transformar essas sombras num pouco mais de luz, espalhar a nossa luz um pouco mais longe, e crescermos todos, como sociedade doirada que pulsa, fortalece mas não calcula…”
“Então vais escrever sobre nós, os teus amigos?”
“Não tem que ser exactamente dessa forma, mas na realidade, partindo do ponto de vista que acabamos de falar, de uma forma ou de outra, estarão presentes. É claro que pode haver presenças mais marcantes ou menos marcantes, no contexto do que pretendo elaborar.”
“Não é uma história sobre os teus amigos, então…”
“Não tem que ser uma história, embora possa passar por aí também; digamos que, e dentro da perspectiva de que falamos, se trata de mostrar a minha forma de ver a vida, e a forma como os que eu conheço bem, a vêem também…
Muitos pontos de vista através dos quais é possível olhar o mundo e as situações com que somos confrontados? Sim, e também deixar ver que todos começamos diferentes, e apesar da tal dinâmica de que falamos, permanecemos diferentes, diria até que cada vez mais diferentes uns dos outros e mais próximos cada um de si próprio.”
“ Se eu escrevesse alguma coisa sobre mim, assumindo-me com sou - e aqui surgiu-lhe no olhar uma espécie de alegria maldosa – serias capaz de a incluir no teu livro?” –Notava-se no seu rosto uma irreverência de criança, ao perceber o olhar incrédulo do amigo .- “Ou não estou ao teu nível?”
“Não sabia que tinhas vontade de … mas claro que sim!”
“Pensa bem, estou a dizer que vou escrever sobre mim, na primeira pessoa. Não estás assustado?” – a gargalhada de Mateus incitou-o a prosseguir - “ vou falar sobre o que penso ser o melhor da vida : miúdas, viagens, amigos…e não
me vou preocupar com os juízos de valor que isso vai provocar. Então?”
- A esta altura, Mateus já estava deliciado com a ideia embora isso o pudesse colocar à altura da loucura do Diogo: “um capítulo será teu, mãos à obra!”
Diogo, já esquecido do jantar, foi embora e quando Mateus se levantou para ir trabalhar nas suas histórias, ainda sorria…Diogo poderia não ter muitas coisas sobre o que falar para além do que assumia, e na verdade Mateus já não acreditava nisso, mas seria sempre, e nisso, Mateus acreditava, uma lufada de ar fresco…escreveria algo profundo e leve, ao mesmo tempo, seria sempre na primeira pessoa…e seria, indubitavelmente mais divertido do que as suas histórias… sobre a vida dos outros…
A casa está em silêncio, a amizade é de longa data, a entrada é franca. O escritório, local onde o amigo passa a maior parte do seu tempo, é o primeiro local para onde se dirige. Mateus não se encontra lá; no computador, Diogo apercebe-se de um trabalho em curso: “ah, o novo trabalho do Mateus!” A esta altura, a curiosidade era já muito patente no olhar acutilante de Diogo que se deteve apenas um segundo, antes de considerar que a amizade era grande o suficiente para permitir a invasão…
Senta-se em frente ao écran e começa a ler. Alguns minutos depois, com o olhar apreensivo, pára, recosta-se na cadeira, os olhos muito azuis parecem escurecer…De repente levanta-se, dirige-se às escadas e acede à varanda, no 1º andar; o amigo está ali, sentado, à frente de um whisky, o olhar poisado na paisagem como se estivesse olhando através dela…
-“Mateus!”
-“Diogo! Desculpa” – a expressão de Mateus era quase assustada, parecia ter sido interrompido abruptamente no meio de uma qualquer viagem – “Esqueci-me completamente das horas…vou só pegar o blusão e podemos ir.”
-“Espera um pouco Mateus…” – o seu olhar, o olhar do seu amigo Diogo estava mais sério do que era hábito, sentou-se à sua frente e parecia… um pouco mais o Diogo que ele, Mateus, adivinhava, do que o que se revelava todos os dias, à vista de todos…o bonitão bem sucedido profissionalmente, que não deixava escapar um fim-de-semana, no seu próprio iate, sempre em companhias deslumbrantes, alegre e deslizante, estava sério…
Na verdade, Mateus já tinha percebido que havia mais Diogo do que ele mostrava através dos óculos de sol, mas embora o fascinasse a possibilidade dessa revelação, não constituía para ele um problema a aparente superficialidade do amigo. Para Mateus, não era importante responder a questões como as que lhe eram recorrentemente colocadas quando se falava de Diogo; um sorriso, perante questões como “não sei como consegues ser amigo daquele tipo”,”não tem nada em comum contigo”, “não passa de um playboy”, era para Mateus a única resposta possível, porque não tinha sentido nunca necessidade de justificar a amizade, fosse por quem fosse, com argumentos de qualquer tipo; para Mateus, a amizade entre as pessoas acontecia num primeiro momento sem razões concretas, antes por puro acaso, empatia que pode ou não consolidar-se… e depois vai-se construindo em constante interacção, alheia a questões que lhe são irrelevantes, até que se transforma mesmo em amizade, aquela, a única digna desse nome, em que se aceita o outro tal como é sem que haja a pretensão de mudar uma vírgula… Claro que, para ele, a amizade também não era a elegia constante um do outro, nem incapacidade de agitar, não era uma relação morta ou um lago de águas paradas; pelo contrário, era uma relação dinâmica em que tudo o que é importante para o crescimento de cada um é discutível, e dessa forma a amizade se renovava a cada passo, a cada silêncio (entre verdadeiros amigos, podem partilhar-se silêncios mais significativos do que certas conversas que se pretendem inteligentes e férteis), mas em que o nível de respeito é o mais alto, independentemente de todas as variáveis individuais existentes… Assim, para Mateus, a aparente leveza do amigo tinha contribuído para reflectir sobre si próprio ou, dizendo de outra forma, tinha contribuído, como é natural, para a sua construção pessoal, para um aprofundamento do seu auto-conhecimento, para uma maior consciência da sua identidade e, consequente e previsivelmente, tinha contribuído também para o aprofundamento da relação de amizade entre os dois…Mais uma forma silenciosa de crescer na relação com os outros e consigo próprio.
Não, para Mateus a alegria de viver não constituía pecado, e também não acreditava na futilidade completa, tal como não acreditava em perfeições ou imperfeições absolutas; apesar de lugar comum, ele acreditava na importância desses conceitos que lhe permitia vislumbrar inúmeras nuances em cada pessoa que encontrava, com a consciência de que, ainda assim, nem de si próprio conseguiria nunca saber tudo o que era importante. Assim, quando o seu amigo Diogo demonstrou mais seriedade do que aquela a que o tinha habituado, Mateus percebeu que algo importante se passava com o amigo, mas não conseguiu vislumbrar a mais pequena ideia do que se tratava. Apesar disso, percebia que esse momento prenunciava um daqueles rasgos de sensibilidade que ele já percebera existirem por detrás da maluqueira, aquelas tristezas escondidas atrás de…coisa nenhuma… E mais uma vez, não é pecado gostar de alguém, seja de quem for, só porque não tem o nosso sorriso compreensivo, as nossas “tretas” profundas e a nossa vida comedida. Não, o pecado não existe, nem no Mateus, nem no Diogo. Mateus admite que o Diogo o fascina e jamais explicará a alguém a razão, porque simplesmente não precisa, para ele a amizade não se explica, vive-se, e Mateus não sente vontade de quebrar o seu palácio de cristal explicando o que já percebeu de profundo atrás de toda aquela leveza… neste caso, a sustentável leveza de um ser mais profundo do que aparenta…
-“Mas não vamos jantar? Ou preferes fazer qualquer coisa aqui?”
-“Não… estava a pensar numa coisa… acabei de fazer algo que tu jamais farias, eu sei…” – sentou-se na cadeira e o playboy não estava lá, era mesmo o Diogo, o Diogo que se escondia afincadamente de todos – “eu li o trabalho que estás a fazer! Quer dizer, fui à tua procura ao escritório, não estavas lá, tive curiosidade, li o que tinhas no computador… não, não estou a justificar o que não tem explicação, tu conheces-me, está errado mas confesso que não resisti…”
Mateus ficou sério por uns segundos… melhor dizendo, o Mateus continuou sério como sempre foi, embora por um ou dois segundos o seu olhar tenha parecido um pouco mais escuro. No entanto, quando voltou a falar, não existia nenhum tipo de zanga nem no olhar nem na voz: “não o faria, mas és meu amigo, não te escondi que pretendia escrever um novo trabalho…embora não, não o fizesse! Mas também – deu uma gargalhadinha, acomodou-se, bebeu um golo de whisky - não me estou a ver a ler à revelia o que tu não escreves!”
A tentativa de Mateus de desdramatizar a atitude do amigo parecia, no entanto, não estar a resultar; Diogo continuava sério, e, pior do que isso, surgiu-lhe no rosto uma certa expressão de mágoa: “ah, então é isso…o Diogo não é páreo para ti…”
Mateus estava agora bastante preocupado; não tivera nunca intenção de desvalorizar o amigo, mas não são as intenções que importam mas as consequências que os nossos actos provocam nos outros…afinal, que importância pode ter a nossa boa intenção quando fazemos qualquer coisa, se isso magoa aqueles a quem a nossa boa intenção se dirige? E enquanto um turbilhão de dúvidas sobre si próprio tomava conta da sua mente, ouve a voz calma: “ eu sei que não tinhas intenção.”
-“Desculpa, nunca me passou pela cabeça…” – o amigo interrompeu-o, desvalorizando ele, agora, a situação.
-“Apercebi-me mais uma vez, de uma característica dos teus trabalhos…bom, não sei se é uma característica, mas tu és bastante cuidadoso em não deixar transparecer a tua formação e experiência profissional no que escreves. Não posso deixar de pensar qual será o motivo…”
Mateus estava um pouco perplexo: “Não existe um verdadeiro cuidado em escondê-lo, embora prefira dissociar esta actividade da actividade profissional, por sentir, desta forma, mais liberdade para criar, e talvez também porque assim posso evitar que as pessoas que lêem os meus trabalhos fiquem condicionadas por essa informação. Mas o que é que te perturba em relação a isto?”
O Diogo estava sério havia mais do que cinco minutos o que era preocupante por si próprio.”Tu não achas um pouco…enfim, desonesto, de um certo ponto de vista, ocultares a tua formação profissional quando ela se reflecte nos teus trabalhos? Será que isso não traduz um problema teu perante a possibilidade de ser avaliado através do que escreves? Ou da avaliação dos teus trabalhos ser mais exigente pelo facto de teres uma determinada formação profissional?”A esta altura Diogo serve-se de um pouco mais de whisky; Mateus está a ouvi-lo e percebe pela sua vivacidade, pelo brilho dos olhos, que não vai ficar por aqui.”Há situações em que essa informação não é relevante, ou não é tão relevante; na tua situação é importante, não te parece? Imagina que és um professor, um advogado, um contabilista…Apesar de todas as nossas experiências serem transportadas para o que fazemos, o teu caso é um daqueles em que essa informação tem importância acrescida mas que, também por isso, acarreta mais riscos face à avaliação a que todos estamos sujeitos, quando expomos o que fazemos à apreciação dos outros. Concretamente em relação aos teus trabalhos, assinados por um profissional de outra área qualquer, por exemplo de qualquer uma das que citei, a avaliação vai incidir muito em aspectos como o conhecimento profundo do ser humano, uma sensibilidade em dose adequada, blá blá blá concordas?”
-“Claro, continua.”À relativa surpresa inicial, esta conversa tinha dado lugar, no espírito de Mateus, a um curto mas intenso passeio pelas suas próprias alamedas, alamedas cuja existência ignorava e que, guiado pelo Diogo, acabava de descobrir, iniciando acto contínuo a sua exploração.
-“Então, no momento em que assumires a tua formação profissional, o teu trabalho vai ser avaliado com um critério de exigência maior do que até agora, concordas? O excelente trabalho que tens feito deixará de ser …tão surpreendente! É isso que te assusta?” – Mateus não pode evitar de entender o ponto de vista do Diogo. No entanto, e não sendo essa a verdadeira razão da sua opção, em termos de forma de apresentação de trabalho, tentou explicá-lo, com a calma que lhe era peculiar: “Compreendo o teu ponto de vista, Diogo, sem dúvida, mas se não forneço informações acerca do autor, é apenas porque, apesar de ser sempre uma construção pessoal, um livro, na minha perspectiva, deve ser avaliado pela sua capacidade ou incapacidade de provocar no eventual leitor, uma reflexão sobre si próprio, mais um ponto de partida para uma nova viagem através de si próprio, mais um momento de exploração da sua própria identidade… Deste ponto de vista, o autor do livro não é protagonista deste processo; o verdadeiro protagonismo divide-se entre o livro e o leitor, um porque adensa no leitor o conhecimento de si próprio, outro porque ultrapassa o próprio livro, através do seu estímulo, mas distanciando-se dele, numa recriação pessoal desse ponto de partida que o aproxima um pouco mais de si próprio …onde está a grande importância de um escritor, para além de ter ou não a capacidade construir um trabalho que desperte cada leitor para si mesmo? Que importância tem para quem lê, saber o que faz o autor do livro se ele não quiser dar-se a conhecer? Se for bem sucedido na sua intenção, será a primeira peça do puzzle a ser ultrapassada, e isso acontece no exacto momento em que o livro mostra alcançar o objectivo do seu criador original, do primeiro, apenas...Eu sinto mais liberdade de espírito escrevendo sem me apresentar, mas acredito que cada trabalho deve ser avaliado pelas tais capacidades que pode ou não ter, independentemente de factores que penso não serem relevantes.
-“ Visto dessa forma talvez tenhas razão. A propósito do teu livro, a única vez que tu falaste sobre a intenção de o escrever - aqui, o olhar era malicioso ao ponto da Mateus estar à espera de qualquer coisa, até da maior maluqueira - , talvez tenha contribuído para aguçar a minha curiosidade, hoje; Tu pretendes partir do facto de que todos somos produtos de nós e da influência exercida pelos outros, que nós por nossa vez também influenciamos, é assim?”
“Sim, como ponto de partida sim…Mas como, no que se refere de uma forma mais consistente, à nossa própria construção, para mim são os Amigos os nossos principais co-autores, tal como nós somos os deles, pelo afecto, respeito e a confiança que propicia a mais desagradável das verdades, de forma que não magoa mas nos faz pensar no que somos e não sabemos, no que ainda não somos e de que nunca sentiríamos a falta, se não fossem os outros, os tais que nos rodeiam e que vêem as nossas sombras, e não se calam; só dessa forma nós podemos tentar transformar essas sombras num pouco mais de luz, espalhar a nossa luz um pouco mais longe, e crescermos todos, como sociedade doirada que pulsa, fortalece mas não calcula…”
“Então vais escrever sobre nós, os teus amigos?”
“Não tem que ser exactamente dessa forma, mas na realidade, partindo do ponto de vista que acabamos de falar, de uma forma ou de outra, estarão presentes. É claro que pode haver presenças mais marcantes ou menos marcantes, no contexto do que pretendo elaborar.”
“Não é uma história sobre os teus amigos, então…”
“Não tem que ser uma história, embora possa passar por aí também; digamos que, e dentro da perspectiva de que falamos, se trata de mostrar a minha forma de ver a vida, e a forma como os que eu conheço bem, a vêem também…
Muitos pontos de vista através dos quais é possível olhar o mundo e as situações com que somos confrontados? Sim, e também deixar ver que todos começamos diferentes, e apesar da tal dinâmica de que falamos, permanecemos diferentes, diria até que cada vez mais diferentes uns dos outros e mais próximos cada um de si próprio.”
“ Se eu escrevesse alguma coisa sobre mim, assumindo-me com sou - e aqui surgiu-lhe no olhar uma espécie de alegria maldosa – serias capaz de a incluir no teu livro?” –Notava-se no seu rosto uma irreverência de criança, ao perceber o olhar incrédulo do amigo .- “Ou não estou ao teu nível?”
“Não sabia que tinhas vontade de … mas claro que sim!”
“Pensa bem, estou a dizer que vou escrever sobre mim, na primeira pessoa. Não estás assustado?” – a gargalhada de Mateus incitou-o a prosseguir - “ vou falar sobre o que penso ser o melhor da vida : miúdas, viagens, amigos…e não
me vou preocupar com os juízos de valor que isso vai provocar. Então?”
- A esta altura, Mateus já estava deliciado com a ideia embora isso o pudesse colocar à altura da loucura do Diogo: “um capítulo será teu, mãos à obra!”
Diogo, já esquecido do jantar, foi embora e quando Mateus se levantou para ir trabalhar nas suas histórias, ainda sorria…Diogo poderia não ter muitas coisas sobre o que falar para além do que assumia, e na verdade Mateus já não acreditava nisso, mas seria sempre, e nisso, Mateus acreditava, uma lufada de ar fresco…escreveria algo profundo e leve, ao mesmo tempo, seria sempre na primeira pessoa…e seria, indubitavelmente mais divertido do que as suas histórias… sobre a vida dos outros…
25.10.06
O FIM DO PRINCIPIO
Acordei cedo e vi, através das persianas , o sol, lá fora...
Bastou levantar-me e aceder à varanda, para perceber que a promessa de um lindo dia se iria dissipar rapidamente...
No entanto, e como (penso eu) qualquer pessoa a meio caminho entre os 50 e os 60 anos, já não me deixei demover com a perspectiva de um dia cinzento, apesar da hipócrita promessa de um sol que já nao é certo como foi em outros tempos e levantei-me, porque a vida a cada segundo se esvai, o meu tempo vai ser escasso para pensar em tudo o que me assola o espírito, e ficar na cama só poderia aumentar-me a angústia...
Sim, o meu tempo tem angústias, apesar de não estar numa qualquer lista de desempregados, de ter provado que sou um cidadão que cumpriu os seus deveres, de não ter dificuldade em pagar a luz, de me poder dar a alguns luxos que muitos consideram neste momento uma miragem...
E as minhas angústias advêm, em muito, do facto de, como cidadão produtor de serviços ter cessado funções voluntária e temporáriamente (penso eu?), e perceber que a minha mente continua clara, e o meu espírito acutilante como um canivete suiço... O que fazer com a energia que me resta?
Sempre fui exigente. Comigo e com os outros. Sempre me dei ao luxo de criticar, mas tive também o cuidado de evitar cometer os erros que reconhecia ver nos outros. E continuo, com a idade do barão que pode relaxar no cadeirão qual gato dorminhoco e feliz, a sentir, a ver e a pensar naquilo que já ficou para trás, sem contudo deixar de reflectir no que a vida ainda me permite vislumbrar... Coisas de idade avançada!...
Não sou muito falador!Não finjo interesse por conversas que para mim as não tem, mas gosto de uma boa discussão de ideias quando encontro quem tem ideias para discutir e sente interesse em o fazer comigo!
E assim, entre conversas interessantes e escutas de relatos às vezes arrepiantes, preencho muito do meu tempo em tarefas que não sou obrigado a fazer, que são monótonas, mecânicas, e que me permitem utilizar o que resta dos neurónios para uma reflexão sobre o que a vida me dá oportunidade de viver.
-----------------
Pois é... a esta altura da viagem, vivem-se mais as histórias dos outros, do que as histórias que já não somos capazes de construir por nós próprios...
Existe uma espécie de auto conhecimento através de uma série de histórias que não sendo por nós vividas, nos fazem viver, nos provocam ternura, revolta, ou febre que antibiótico algum é capaz de matar...
Tornamo-nos uma espécie de cogumelos que crescem, crescem desmesuradamente através da vivência dos outros, que se vai transformando no sentido da nossa própria vida...
E, mais uma vez, vem à nossa mente o antes, o tempo em que éramos nós que construíamos o filme da nossa vida, e a construção agora, da história dos outros que vamos, indelévelmente, transformando nas nossas próprias...
Foi com esta mescla de nostalgia e algum conforto que, uma destas tardes, senti o tempo retroceder vertiginosamente. Tão vertiginosamente que, numa fracção de segundo, este homem que dobra a última curva da estrada, já o não é. Tinha voltado a ser a semente que começa a germinar, de olhos curiosos e alguns receios...
Voltou a ser a semente que não sabe se vai ser um pé de feijão ou um morangueiro... que pode ser qualquer coisa, crescer em qualquer direcção...
Bastou levantar-me e aceder à varanda, para perceber que a promessa de um lindo dia se iria dissipar rapidamente...
No entanto, e como (penso eu) qualquer pessoa a meio caminho entre os 50 e os 60 anos, já não me deixei demover com a perspectiva de um dia cinzento, apesar da hipócrita promessa de um sol que já nao é certo como foi em outros tempos e levantei-me, porque a vida a cada segundo se esvai, o meu tempo vai ser escasso para pensar em tudo o que me assola o espírito, e ficar na cama só poderia aumentar-me a angústia...
Sim, o meu tempo tem angústias, apesar de não estar numa qualquer lista de desempregados, de ter provado que sou um cidadão que cumpriu os seus deveres, de não ter dificuldade em pagar a luz, de me poder dar a alguns luxos que muitos consideram neste momento uma miragem...
E as minhas angústias advêm, em muito, do facto de, como cidadão produtor de serviços ter cessado funções voluntária e temporáriamente (penso eu?), e perceber que a minha mente continua clara, e o meu espírito acutilante como um canivete suiço... O que fazer com a energia que me resta?
Sempre fui exigente. Comigo e com os outros. Sempre me dei ao luxo de criticar, mas tive também o cuidado de evitar cometer os erros que reconhecia ver nos outros. E continuo, com a idade do barão que pode relaxar no cadeirão qual gato dorminhoco e feliz, a sentir, a ver e a pensar naquilo que já ficou para trás, sem contudo deixar de reflectir no que a vida ainda me permite vislumbrar... Coisas de idade avançada!...
Não sou muito falador!Não finjo interesse por conversas que para mim as não tem, mas gosto de uma boa discussão de ideias quando encontro quem tem ideias para discutir e sente interesse em o fazer comigo!
E assim, entre conversas interessantes e escutas de relatos às vezes arrepiantes, preencho muito do meu tempo em tarefas que não sou obrigado a fazer, que são monótonas, mecânicas, e que me permitem utilizar o que resta dos neurónios para uma reflexão sobre o que a vida me dá oportunidade de viver.
-----------------
Pois é... a esta altura da viagem, vivem-se mais as histórias dos outros, do que as histórias que já não somos capazes de construir por nós próprios...
Existe uma espécie de auto conhecimento através de uma série de histórias que não sendo por nós vividas, nos fazem viver, nos provocam ternura, revolta, ou febre que antibiótico algum é capaz de matar...
Tornamo-nos uma espécie de cogumelos que crescem, crescem desmesuradamente através da vivência dos outros, que se vai transformando no sentido da nossa própria vida...
E, mais uma vez, vem à nossa mente o antes, o tempo em que éramos nós que construíamos o filme da nossa vida, e a construção agora, da história dos outros que vamos, indelévelmente, transformando nas nossas próprias...
Foi com esta mescla de nostalgia e algum conforto que, uma destas tardes, senti o tempo retroceder vertiginosamente. Tão vertiginosamente que, numa fracção de segundo, este homem que dobra a última curva da estrada, já o não é. Tinha voltado a ser a semente que começa a germinar, de olhos curiosos e alguns receios...
Voltou a ser a semente que não sabe se vai ser um pé de feijão ou um morangueiro... que pode ser qualquer coisa, crescer em qualquer direcção...